ARACAJU/SE, 16 de abril de 2024 , 20:12:51

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Para bem viver em Aracaju

O poeta Jacintho de Figueiredo registrou em “Motivos de Aracaju” diversos aspectos da cidade da sua infância e adolescência. A temática deste livro, publicado em 1980, é a saudade, expressa no lamento pela destruição das lembranças que o ligavam à cidade dos seus amores. Indignado, ele chegou a autografar um exemplar do seu livro para um amigo, Otoniel Carvalho, ofertado “com uma imensa saudade do Passado e um nojo danado do Presente”.
Lendo os “Motivos” e contemplando a nossa Aracaju de hoje, desnuda, poluída, árida e cada vez menos preservada, fico a imaginar o que sentiria o poeta, se pudesse percorrer os trajetos que ele conheceu. Muito se fala, mas pouco se faz em torno do cenário que vai se estabelecendo com rapidez. Pouco ou nada acontece para equilibrar os danos causados pela opção de ceder a cidade ao domínio do transporte individual. O número de carros entulhando as vias, levando à destruição da vegetação e desrespeitando os pedestres, passou a ser visto como indício de modernidade. Os carros e a insegurança quase aboliram o pedestre em Aracaju e tornaram as suas ruas vazias, perigosas, hostis.
No passado, Jacintho de Figueiredo viu nelas “um convite à brincadeira”, divertiu-se com os tipos de rua, observou o casario, os beirais, os jardins, o colorido, o calçamento, o silêncio ou o alvoroço das ruas, as lembranças da “vida afável sobre o plano xadrez” na cidade “debruçada à beira do rio”. Quanto a nós, mesmo que nos distanciemos da visão idílica do poeta, perdemos o direito de flanar, de observar e de contemplar. Nem às calçadas temos mais direito, pois a maioria delas se transformou em estacionamentos, muitas vezes avançando sobre pequenos jardins que embelezavam a frente das casas, quando não permanecem cheias de buracos, ameaçando caminhantes e impossibilitando a locomoção de deficientes.
Mesmo assim, assistimos indiferentes à destruição da cidade, à perda dos marcos que a identifica, à obsolescência dos roteiros imaginários que construímos para nossa orientação. Estamos nos submetendo a viver numa cidade que vai se tornando estranha, obrigados ao rompimento de vínculos com os lugares e levados a perder as referências que construímos no espaço. A cada dia, casas são destruídas para dar lugar aos vazios – os estacionamentos. Nem mesmo imóveis classificados como importantes para a memória afetiva da cidade foram poupados. As ruas se tornam conjuntos de muros vazios, atentando contra a beleza da paisagem urbana e aumentando os perigos noturnos.
Não venho aqui retomar o saudosismo do poeta. Não se trata de apego ao passado, nem de ignorância de que as cidades estão em constante transformação. Mas esta transformação não deveria acontecer de qualquer forma, sobrepondo interesses pontuais de alguns aos direitos da coletividade. A quem serve esta destruição do nosso patrimônio cultural comum? Quem tem direito à cidade? Por que se sucedem os anos sem que a Câmara Municipal assuma a responsabilidade de atualizar e definir o Plano Diretor que deveria disciplinar este processo? Será que não sabem, os Senhores Vereadores, que a cidade não espera o tempo que eles lhe estão impondo com o seu descaso?
Já ouvi de alguém a observação de que o aracajuano parece não ter amor por sua cidade. Triste parecer, que me calou profundamente na alma. Será que esse distanciamento, esse estranhamento do morador que foi retirado das ruas, encerrado no transporte individual ou obrigado a enfrentar um difícil, perigoso e deficiente transporte coletivo, pode explicar o “desamor”? Não se ama o que não se conhece e aquilo de que não se cuida, perece. A indiferença diante da destruição do nosso patrimônio cultural, o avanço da poluição visual que encobre as fachadas e enfeia a paisagem, a aridez de uma cidade onde a incidência da claridade e do calor não são contrabalançados pela sombra e pelo verde, reclama dos poderes públicos, em todos os níveis, uma intervenção efetiva para disciplinar os processos irreversíveis e buscar soluções que protejam a memória da cidade e priorizem os interesses coletivos.
Quanto a nós, os cidadãos, também somos responsáveis por fazer a nossa parte, saindo da indiferença, da passiva imobilidade e contribuindo, reivindicando. É chegada a hora de pensar nos vários “Motivos” que temos para tornar a nossa cidade muito melhor. Pensemos neste ambiente e nos marcos que acompanham as trajetórias de nossas vidas, para acompanhar o canto que nos deixou um dia outro poeta, o compositor Ismar Barreto, revelando sua ligação com a cidade:
“E quando o dia raiar
E vir a vida a nascer
Te amo, Aracaju
Resolvi te viver
Te viver, Aracaju. ” (Viver Aracaju)
Somente vivendo a cidade vamos amá-la e protege-la, impedindo a sua degradação. Não apenas o núcleo central a partir do qual ela se desenvolveu, mas toda a área da sua expansão, precisam ser pensadas como patrimônio comum, voltado para os interesses coletivos. Recuperar o sentido das nossas ruas e praças para o pedestre e para o encontro, pode ser um bom começo.