ARACAJU/SE, 23 de abril de 2024 , 6:46:23

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A igual proteção das leis

Qual é o sentido de ler decisões antigas de tribunais de outros países? Além da curiosidade, qual é a utilidade prática delas? A resposta mais simples invoca a citação de Terêncio: “Homo sum; humani nil a me alienum puto”. Em vernáculo: sou humano e nada do que é humano me é estranho. Isto dito, nota-se que as deliberações judiciais revelam muito de uma sociedade, tanto quanto os trajes, a língua, as comidas, a arquitetura, as leis escritas, os costumes etc. Elas são uma concentrada revelação de como o poder do Estado entende que deve resolver um problema. Isso diz muito sobre o pensamento predominante em dada comunidade, em determinada época.

Para seguir ilustrando essa perspectiva, cita-se, mais uma vez, um caso da Suprema Corte dos Estados Unidos, Skinner versus Oklahoma. Nele, em 1º de junho de 1942, invalidou-se uma legislação do Estado de Oklahoma, de 1936, que previa a esterilização, por vasectomia ou salpingectomia, de “criminosos habituais”. Entendia-se como tal quem, tendo sido condenado duas ou mais vezes, por “crimes envolvendo torpeza moral”, fosse posteriormente punido por tal tipo de delito. Excetuavam-se dos termos do estatuto, expressamente, certas infrações, incluindo peculato.

A regra foi aplicada a Jack Skinner, que foi condenado uma vez por furto de galinhas e duas vezes por roubo armado. Não conformado, ele sustentou que a norma violava a cláusula de igual proteção das leis, contida na Décima Quarta Emenda. O Supremo Tribunal Estadual havia validado essa regra, conforme aplicada a ele pela primeira instância. Todavia, a Suprema Corte dos Estados Unidos reverteu esse entendimento.

O juiz William Douglas escreveu a posição da Corte, adotada por unanimidade. Ele disse que o caso tocava a área sensível e importante dos direitos humanos. Oklahoma privava certos indivíduos de possuírem descendência. Teceu considerações sobre o direito a ter uma prole, aos riscos de perseguição de grupos minoritários e à clara discriminação imposta pela lei impugnada, que usava crimes como fator distintivo, sem que houvesse qualquer comprovação de que as medidas eugênicas fossem necessárias em uns casos e outros não. Nesse contexto, percebe-se que não se invalidou a eugenia, em si, mas apenas o parâmetro eugênico utilizado, que foi reputado não isonômico. A decisão, inclusive, citou o precedente de Buck versus Bell, de 1927, um julgamento no qual uma jovem, supostamente com problemas psiquiátricos, foi esterilizada, com a autorização da Suprema Corte.

Para demonstrar que a lei era discriminatória, Douglas anotou: “Oklahoma não faz nenhuma tentativa de dizer que aquele que comete furto por invasão, ardil ou fraude possui características biologicamente herdáveis que aquele que comete peculato não possui”.  Prosseguiu: “Não temos a menor base para inferir que essa linha tem qualquer significado na eugenia, nem que a hereditabilidade dos traços criminais siga as distinções legais claras que a lei marcou entre esses dois crimes. Em termos de multas e prisão, os crimes de furto e peculato são iguais no código de Oklahoma. Apenas quando se trata de esterilização, as medidas e penalidades da lei são diferentes. A cláusula de proteção igual seria de fato uma fórmula de palavras vazias se tais linhas visivelmente artificiais pudessem ser traçadas.” Em 1942, portanto, os mais altos juízes estadunidenses acreditavam que a criminalidade poderia ser hereditária, mas repudiavam a possibilidade de que alguns criminosos pudessem sofrer a sanção da esterilização e outros não. Para evitar discriminações, todos foram poupados.

O Código Penal brasileiro, que é de 1940, não prevê esterilizações. Essa parte da lição já estava assimilada por aqui antes mesmo da decisão estadunidense. Mas o sistema penal brasileiro está cheio de incorreções, de discriminações repugnantes. Como exemplo, pode-se tomar o Habeas Corpus 200.764/SP. Nele, em 28 de abril passado, a Ministra Cármen Lúcia concedeu a liberdade a um indivíduo, em situação de rua, que foi preso em flagrante dias antes, quando tentou furtar dois sacos de materiais recicláveis avaliados em 30 reais, que seriam vendidos por ele para comprar comida. Nada obstante, esse homem foi encarcerado preventivamente e denunciado criminalmente por furto qualificado. A causa, que revela situação famélica e discussão sobre um bem jurídico insignificante, precisou chegar ao Supremo Tribunal Federal, mesmo com a restituição dos bens, já que as três instâncias inferiores negaram o pedido de trancamento da ação penal. O estranho é que, fosse o caso de sonegação fiscal, ainda que milionária, segundo a lei brasileira, o pedido de parcelamento do pagamento do tributo (o equivalente à restituição do que foi subtraído) impediria o prosseguimento da ação penal.

Há sempre algo que podemos aprender com os tribunais estrangeiros, pois não? Mesmo que com quase oitenta anos de atraso.