ARACAJU/SE, 20 de abril de 2024 , 8:53:03

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Semana passada, o Senado Federal aprovou a indicação do ex-advogado-geral da União – e também ex-ministro da Justiça – André Mendonça, para a cadeira deixada pelo ministro Marco Aurélio no Supremo Tribunal Federal. Por 47 votos a 32, manteve-se a tradição de não rejeitar o indicado pelo Executivo. Desde 1894, não se recusa um nome enviado pela presidência da República. Isso leva a pensar que, ou bem as escolhas foram especialmente qualificadas nesses 127 anos, ou os senadores abdicaram de um poder de que dispõem.

As sabatinas dos indicados estão a merecer reflexão. Na da 1º de dezembro, por exemplo, faltaram questionamentos agudos sobre temas relevantes do debate público e pautas judiciais importantes. Não se colheu do futuro ministro posições assertivas sobre a prisão em segunda instância, a criminalização da homofobia, a liberdade de expressão na internet, a descriminalização do consumo de entorpecentes, a vacinação como condição de exercício de certos direitos etc. Não se sabe se ele será mais ativista ou deferente às escolhas do Legislativo.

No modelo estadunidense, que inspirou o brasileiro, as coisas não são tão simples. Veja-se, por exemplo, o caso de Robert Heron Bork (1927-2012).  Jurista reconhecido, professor de Yale, ocupou cargos relevantes no governo, dentre os quais o de “solicitor-general” (1973-1977), que se parece com o de advogado-geral da União. Durante a crise de Watergate, foi “attorney-general” (1973), algo equivalente a ministro da Justiça, entre nós. Em 1981, Ronald Reagan o indicou para a Corte Federal de Apelações do Distrito de Columbia.

Quando o juiz Lewis Powell se aposentou, em 1987, Bork foi convidado por Reagan para substituí-lo na Suprema Corte dos Estados Unidos (SCOTUS). Era, então, reputado como eminência do conservadorismo jurídico. Criticava, especialmente, os julgamentos da “Era Warren” (1953-1969), em que esse tribunal foi presidido por Earl Warren (1891-1974). Nessa época, importantes decisões progressistas sobre direitos civis e de acusados em processos criminais foram tomadas. Bork as considerava um equívoco já que o texto constitucional não daria espaço para deliberações que não estivessem expressamente albergadas em sua redação, interpretada segundo critérios que os constituintes, os “framers”, abonariam, quando ela foi escrita, em 1787.

Essa posição teórica, em rude simplificação, é o “originalismo”. Ela entende que o Judiciário deve ser autocontido, evitando decisões que se assemelhem à tarefa de legislar. Só o Legislativo teria aptidão democrática para fazer escolhas públicas substanciais.

Críticas de Bork ao julgamento de casos emblemáticos foram invocadas como aptas a impedir a sua chegada à Suprema Corte. Ele se opôs à técnica de julgamento de “Brown versus Board of Education”, de 1954 (que garantiu aos negros o acesso às mesmas instalações de ensino dos brancos, pondo fim à juridicidade da doutrina racista “separados, mas iguais”). Também não estava de acordo com a formatação de “Roe versus Wade”, de 1973 (que assegurou o direito de aborto até o final do terceiro mês de gestação).

Bork recebeu uma inédita aversão da Associação Americana das Liberdades Civis (ACLU), uma das mais prestigiadas organizações não-governamentais daquele país. Na televisão, o ator Gregory Peck, em anúncio pago, pedia à população que exigisse de seu senador que votasse contra sua investidura. Ted Kennedy, com todo o prestígio que dispunha, fez vigoroso discurso em desfavor dele. O então presidente do Comitê Judiciário do Senado, Joe Biden, trabalhou contra sua designação. Bork passou a ser enxergado como um extremista. Durante doze dias, foi inclementemente sabatinado e não fugiu das perguntas. Ao cabo, o Comitê recomendou a sua rejeição por 9 a 5. O Senado o reprovou por 58 a 42. 

Derrotado, Bork abandonou a toga, mas seguiu sendo um influente jurista. Seu pensamento, ainda que com variações, alcançou lugar na SCOTUS. Primeiramente, com Antonin Scalia (1936-2016) e Clarence Thomas, o atual decano. Refletiu-se, também, sobre outros membros da atual composição, como John Roberts, Samuel Alito, Neil Gorsuch, Brett Kavanaugh e Amy Coney Barret. Todos, em alguma medida, integraram a Sociedade Federalista, entidade de referência do conservadorismo, do textualismo e originalismo jurídicos estadunidenses, por Bork influenciada.

Esse episódio deixou sequelas. Um verbo foi introduzido na língua inglesa: “to bork”, que significa “difamar ou caluniar alguém, sistematicamente, especialmente nos meios de comunicação de massa, geralmente para impedir sua nomeação para um cargo público”. Um rearranjo institucional emergiu. O Senado, além de verificar as qualidades éticas e profissionais do indicado, passou a aferir o perfil filosófico e ideológico do sabatinado. A partidarização desse processo passou a ser cada vez mais evidente e o poder de rejeição uma ferramenta firmemente empunhada por adversários. Isso por lá. Por aqui não se borqueia desse jeito, ainda.