ARACAJU/SE, 18 de abril de 2024 , 2:32:28

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Fred, o apaixonado

Quando os japoneses atacaram, sem aviso, a base militar de Pearl Harbor, em 7 de dezembro de 1941, a vida de Fred Korematsu – e de milhares de outros cidadãos estadunidenses como ele – foi particularmente abalada. Dentre outras providências, o presidente Franklin Roosevelt editou a Ordem Executiva 9066, em 19 de fevereiro de 1942, concedendo poderes aos militares de controlar áreas vulneráveis do território dos Estados Unidos.

A ordem executiva, o equivalente no direito brasileiro a um decreto, não se destinava a nenhum grupo em particular. No entanto, em maio desse mesmo ano, foi publicada a Ordem de Exclusão Civil 34, que ordenava que os súditos do Império Japonês e os cidadãos estadunidenses deles descendentes, residentes na costa oeste, fossem compulsoriamente deslocados para “acampamentos de internação”.

Fred tinha uma vida normal em San Leandro, na Califórnia. Tinha uma namorada e era apaixonado por ela. Para fugir da ordem e tentar se passar por hispânico ou havaiano, mudou de nome e fez uma cirurgia plástica. Não deu certo. Foi capturado e preso em 30 de maio. Fred tinha 23 anos, nascera nos Estados Unidos e era cumpridor dos seus deveres, sem qualquer mácula em sua vida pregressa. Estava sendo considerado suspeito por ter ascendentes japoneses. Apenas por isso.

Era uma guerra, é verdade, mas a mesma providência não foi adotada em relação a descendentes de italianos ou alemães em parte alguma do território dos EUA. Por conseguinte, era uma medida seletiva, dentro de outra, de exceção, que alcançava os direitos de uma pessoa que não cometera qualquer ilícito. A condenação de Fred pela evasão dos deveres de internação gerou uma pena, mas ele conseguiu a liberdade condicional. Foi remetido a um acampamento em Utah. Mas, com o apoio da Associação Americana de Liberdades Civis, o tema foi parar nos tribunais. O debate era sobre a razoabilidade da exigência e quanto aos direitos de igualdade constitucionalmente assegurados.

As instâncias iniciais não viram qualquer inconstitucionalidade na conduta segregacionista. A matéria chegou à Suprema Corte, já no final do conflito mundial, em 18 de dezembro de 1944. Por seis votos a três, ela manteve a orientação militar. A maioria dos juízes entendeu que o caso seria semelhante a um outro, decidido no ano anterior (Hirabayashi versus Estados Unidos). Neste, o toque de recolher era questionado, mas foi entendido adequado à defesa nacional. No julgamento de Korematsu, com base nas mesmas premissas, em posição apresentada pelo juiz Hugo Black, considerou-se que seria legítimo o isolamento, diante do risco da presença de membros desleais nessa comunidade, cuja maioria, entretanto, era reconhecidamente patriota. 

O juiz Felix Frankfurter, nascido austríaco e, portanto, em um país incorporado ao Reich de Hitler, sob um parâmetro rigoroso, seria alguém que poderia ser visto com suspeição segundo tal critério. Nada obstante, lavrou um posicionamento no qual defendeu que a validade de atos em tempos de guerra deve ser vista de acordo com o contexto bélico. Ao judiciário não caberia invadir o mérito das estratégias militares. A segurança nacional demandava essa confiança. Para ele bastava não encontrar proibição constitucional para que a medida fosse possível, ainda que eventualmente criticável. Isso seria problema do executivo e do Congresso, não da Suprema Corte.

A minoria, no entanto, registrou votos indignados. O juiz Owen Roberts acoimou os “acampamentos” de “campos de concentração”, aproximando, portanto, os abusos contra os cidadãos estadunidenses àqueles que eram combatidos pelos próprios soldados. O juiz Frank Murphy exclamou que a decisão excedia os poderes constitucionais e “caía no horroroso abismo do racismo” e que divergia da legalização disso. O juiz Robert Jackson, que atuaria como acusador, pouco depois, no Tribunal de Nuremberg, anotou que não sugeriria que as cortes interferissem em tarefas militares, mas, também, não pensava que elas poderiam agir em desconformidade com a constituição.

Fred só queria ficar em paz com a sua namorada. Tornou-se, na maturidade, um ativista de direitos fundamentais. Foi condecorado, décadas depois, na gestão de Bill Clinton. Soube-se, anos mais tarde, que havia estudos do próprio governo reconhecendo que os nipo-americanos não representavam ameaça. Seu processo, apesar de ser uma das vergonhas jurisprudenciais dos EUA, no entanto, provocou uma mudança conceitual. Na justificativa do juiz Black, a despeito das conclusões, ficou estabelecido que toda classificação de um grupo racial era “imediatamente suspeita” e que, por isso, os tribunais deveriam submetê-las a um “escrutínio rigoroso”. Dez anos adiante, por unanimidade, no caso Brown versus Board of Education, com os votos de Black e Frankfurter, usando esses dois conceitos, a Suprema Corte julgou inconstitucional a segregação racial escolar imposta aos negros. Mas essa história fica para outro dia.