ARACAJU/SE, 25 de abril de 2024 , 13:31:02

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Mau exemplo

Este artigo prossegue o da semana passada. O tema, no entanto, é ligeiramente diverso. Se no anterior, quis-se deixar exposta a ideia de que o direito serve a todos, bons ou maus, desde que a norma jurídica os proteja, o de hoje pretende dizer que não se deve celebrar o erro, ou o abuso, cometido contra quem não se gosta. Os que comemoram decisões administrativas, legislativas, e, especialmente, judiciais equivocadas, sejam as decorrentes do engano sincero, sejam as que revelam o arbítrio, precisam entender que toda ordem é um convite à repetição. Tanto maior a instância produtora dela, mais robusto é o chamado a ser copiada, seguida, renovada. Palavras convencem, exemplos arrastam.

Claus Roxin declarou que o processo penal é o sismógrafo da Constituição e do Estado. Sentem-se os tremores na ordem democrática quando são empregues de modo controvertido os institutos desse segmento jurídico. É o caso de lembrar a fatídica reunião no Palácio das Laranjeiras, na noite de 13 de dezembro de 1968. Ali se reuniram os membros do Conselho de Segurança Nacional, sob a presidência do marechal Costa e Silva. Foi discutida a edição de um novo ato institucional, que viria a ser o AI-5. Quase todos os presentes concordaram com a medida, que concentrava forças no presidente da República, drenando a seiva da já combalida Constituição de 1967. O único dissenso foi do vice-presidente Pedro Aleixo, um professor de direito penal. Ele assinalou que o maior problema de um ato assim não seria o aumento das faculdades enfeixadas no militar do Planalto, mas o poder que se transferia ao guarda da esquina. Os anos subsequentes revelaram o crescimento vertiginoso da tortura, dos desaparecimentos de dissidentes do regime e a expansão exponencial da censura.

Juntando as premissas. Quando alguém é preso em flagrante, tarde da noite, em casa, por causa de uma postagem feita várias horas antes no Youtube, por ordem expedida pelo Supremo Tribunal Federal, alicerçada na Lei de Segurança Nacional, em um inquérito instaurado de ofício, que investiga fatos indeterminados, não se há de estranhar que a polícia se sinta com a prerrogativa de fazer o mesmo, sempre que achar que é o caso.

Foi assim com o deputado federal Daniel Silveira, preso em flagrante, em 15 de fevereiro último, depois das 21 horas, em sua residência, por haver, em comportamento incompatível com o decoro parlamentar, dirigido invectivas chulas contra o Supremo Tribunal Federal e seus membros. Enquanto acusados de crimes hediondos têm a conversão do flagrante em prisão preventiva ou medida cautelar diversa da prisão em 24 horas, ele segue, até o instante em que este texto está sendo escrito (9 de março, meio-dia), detido na condição primitiva, quadro único no território nacional. Pior ainda: o Ministério Público, dono da acusação, já pediu que ele fosse posto fora da cadeia, com monitoramento, mas seu pleito ainda não foi apreciado. A lei e a jurisprudência dizem que é proibido converter sem requerimento a prisão em flagrante em preventiva. O Judiciário, ao não analisar a possibilidade de libertação sob condições, mantém preso um deputado federal, sem que ninguém tenha formulado esse pedido.

É possível que o precedente tenha estimulado a Polícia Militar de Minas Gerais a capturar, na madrugada do dia 4 de março, um estudante que, na tarde anterior havia postado no Twitter a seguinte mensagem: “Gente, Bolsonaro em Udia [Uberlândia] amanhã… Alguém fecha virar herói nacional?” Para os policiais, tratava-se de incitação ao crime, uma infração à Lei de Segurança Nacional. Para o jovem, uma piada. Recolhido a um presídio, foi levado a um juiz federal que entendeu por bem libertá-lo, enquanto correr o processo.

Rapidamente, levantaram-se vozes para assinalar que se tratava de censura, comportamento truculento e ilegal da polícia. De fato, era mesmo. Não se vislumbra no caso posto nenhum intento de incitação ao crime, mas, obviamente, um comentário supostamente engraçado, de péssimo gosto. É razoável imaginar que entre os seguidores do rapaz haveria alguém predisposto a aceitar o jocoso tuíte como um convite ao crime? Aliás, qual crime? A postagem não diz, e, se algum tivesse sido praticado, seria impossível dizer que foi a convite dela.

A culpa disso tudo é da LSN e da descrição aberta que ela faz dos delitos. Se é pensável que o país precisa proteger-se de espiões e de quem promove golpes de Estado, não parece tão evidente que a reputação de autoridades, já tutelada na legislação penal comum, ou brincadeiras de péssimo gosto, sejam convertidas em ameaça à sobrevivência do Brasil. Já passou da hora de ser declarada a não-recepção (inconstitucionalidade de normas anteriores à Constituição) dessa lei. Sua invocação recente contra humoristas, jornalistas e, agora, um universitário, revela que, mais que um entulho autoritário, ela é uma intimidação, um obstáculo ao pleno gozo do Estado de Direito entre nós. Cada uso seu é um mau exemplo a ser seguido. Aleixo tinha razão.