ARACAJU/SE, 20 de abril de 2024 , 9:57:56

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Mentiras eleitorais

O fenômeno das “fake news” tende a ser enxergado como recente, mas não é. A mentira senta praça no debate público há muito tempo, inclusive no âmbito eleitoral. Para não regredir infinitamente, vale referir um caso brasileiro, do começo do século passado, que provocou muitos danos à saúde da incipiente República.

Epitácio Pessoa presidia o Brasil em 1921. Sua sucessão não foi tão fácil quanto fora a sua eleição. Pessoa foi ungido presidente sem fazer campanha e sem votar em si mesmo. No momento do pleito, estava servindo ao país na Europa, atuando na conferência que resultou no Tratado de Versalhes. Ele foi escolhido em 1919 para suceder a Rodrigues Alves (eleito em 1918, mas falecido em janeiro de 1919), na forma costumeira de então: as elites mineira e paulista indicavam o nome e impunham-no ao restante da nação por meio de um complexo jogo de atendimento de interesses regionais.

No entanto, as coisas não estavam pacíficas desta vez. Se o governo queria Artur Bernardes, presidente de Minas Gerais, outros estados fortes, como Rio Grande do Sul, Bahia, Pernambuco e Rio de Janeiro moldaram um grupo político opositor designado Reação Republicana. Eles preferiam Nilo Peçanha, que já houvera ocupado o Palácio do Catete. Eis que se deu a confusão.

Em 9 de outubro de 1921, um domingo, o Correio da Manhã publicou uma carta que seria de Bernardes. Nela, ele chamava o marechal Hermes da Fonseca, ex-presidente e liderança militar inequívoca, de “sargentão sem compostura”. Acusava-o de haver patrocinado, no Clube Militar, um banquete, uma “orgia” para apaniguados. Adiante, adjetivava o vetusto militar de “canalha” e cobrava providências de Raul Soares, senador mineiro, a quem a carta se destinaria. O vocabulário impactou os leitores, que se impressionaram porque a mensagem era manuscrita, em papel timbrado do governo de Minas Gerais. Em 13 de outubro, no mesmíssimo Correio, outra missiva. Nela, Bernardes chamava Peçanha de “moleque capaz de tudo”. O debate eleitoral estava radicalizado.

Bernardes negou peremptoriamente a autoria das cartas. Perícias foram feitas. Algumas assinalavam a veracidade dos papéis. Outras garantiam a falsidade dos textos. As peças foram levadas ao exterior. Nem mesmo lá chegou-se a um consenso sobre a autenticidade dessas correspondências.

Apesar das cartas, Bernardes venceu a eleição de 1º de março de 1922. Naquele tempo, o governo federal não perdia disputa alguma. Simples assim. A fraude era uma instituição eleitoral. Mas a oposição não aceitou facilmente o resultado. Exigia um “tribunal de honra” para aferir e validar o resultado. A crise cresceu tanto que foi uma das causas remotas do levante dos 18 do Forte, em julho daquele ano. O Rio de Janeiro, capital então, estava conflagrado. Tanto estava que, para o eleito assumir, foi necessário que o estado de sítio fosse decretado e com ele o Brasil foi governado por quase todo o período presidencial do mineiro.

As insurreições sob Bernardes foram muitas. Houve, em 1924, o Levante Paulista. Nele, o presidente do estado, Carlos de Campos, foi defenestrado pelos revoltosos, até que as tropas federais, depois de cercarem e bombardearem São Paulo, matando os civis às centenas e ferindo aos milhares, retomaram o Palácio dos Bandeirantes. O evento teve réplicas por muitos outros lugares. Em Sergipe, a Revolta de 13 de Julho, promovida por oficiais do 28º Batalhão de Caçadores, também tomou o governo estadual, entregue a uma junta governativa militar, somente vencida no mês seguinte. Com os oficiais e praças derrotados formou-se a Coluna Miguel Costa-Prestes, que percorreu o Brasil profundo por anos.

Toda essa rebeldia tenentista, toda essa insurgência, que tinha suas causas ideológicas, sociais e políticas, em muito foi inflamada, nas suas origens, pelas duas cartas mencionadas. O que não se soube, no começo de toda essa rebeldia, era que as missivas eram mendazes. Um falsário, especialista em escrita, Jacinto Cardoso de Oliveira Guimarães, confessou, em março de 1922, que falsificara as duas. Ele, na companhia de comparsas, tentou vendê-la. Apenas o senador antibernardista Irineu Machado se interessou e a levou ao Correio da Manhã, que as adquiriu, verificando, antes, a autenticidade, sendo também ele logrado.

Até hoje a legislação brasileira é pouco eficaz na punição dos autores de mentiras eleitorais deliberadas, subdimensionando sua capacidade deletéria. Quando se trata de ofensas, resolve-se em calúnia, injúria e difamação. Mal e mal pune o autor de denunciação caluniosa e da divulgação dessa específica forma de inverdade. Falta uma figura punitiva que capture a construção de boatos e sua circulação, seja no ambiente virtual, seja fora dele, sancionando os candidatos que as estimulam. Isso é imprescindível porque a mentira eleitoral no Brasil pode até ter pernas curtas, mas possui raízes longas, profundas e democraticamente venenosas.