A Constituição do Império, de 1824, dizia, no seu artigo 179, inciso XXXII, que a instrução primária era gratuita a todos os cidadãos. Esse antigo mandamento, cuja essência foi incorporada por todas as constituições brasileiras seguintes, pode fazer crer a um alienígena que o Brasil tem, pela educação básica, uma longa história de atenção prioritária. Infelizmente, não é verdade. O analfabetismo absoluto, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), alcança, atualmente, 11 milhões de brasileiros, um número estarrecedor. A meta legal de erradicação dessa mazela não será batida em 2024.
Mas o enredo não precisava ser esse. No último domingo, 19 de setembro, comemorou-se o centenário do Patrono da Educação Nacional, o recifense Paulo Reglus Neves Freire. O bacharel em direito logo se metamorfoseou em educador e se tornou um pensador notável, o brasileiro mais citado em trabalhos acadêmicos em todo o mundo, doutor “honoris causa” por mais de 40 universidades. Freire construiu uma filosofia da educação original e um método de alfabetização que leva em consideração as condições existenciais do educando. Superava, assim, a técnica “bancária” que depositava conhecimentos no recipiente (o aluno). Ele propunha uma metodologia que convertia a realidade em aliada, dado que dialogava com os objetos já conhecidos por quem aprendia e gerava no alfabetizando um sentimento de apropriação do ambiente ao redor. Por conseguinte, ensejava a conscientização de seu lugar na sociedade e subsequentes possibilidades transformadoras.
Em rude e insuficiente resumo, seu método de alfabetização de adultos, descendente dessa filosofia, conduzia a aprender a ler e escrever em torno de 45 dias. Depois disso, dominando esse instrumental básico, o alfabetizado estaria apto a passos mais largos. A partir de palavras do dia a dia, ditas “geradoras”, identificadas na experiência do educando, que descobria as famílias silábicas. Bota: ba, be, bi, bo, bu; ta, te, ti, to, tu. E assim sucessivamente. Depois, sabedor de seus significados, contextualizando, o aluno aprendia a ler e formular palavras novas, mais complexas, acumulando consciência.
A vivência do alfabetizando contava. Seus afetos e necessidades eram levados em consideração, em um tempo em que a educação era ainda mais hierarquizada do que hoje. A cartilha não vinha pronta: o cotidiano do aprendiz gerava o vocabulário a ser apropriado. Depois de testar o método em pequenos grupos no Recife, a equipe do Serviço de Extensão Universitária da Universidade Federal de Pernambuco, em 1963, na cidade de Angicos, no Rio Grande do Norte, fez o experimento dele com 300 cortadores de cana. Com o auxílio de um retroprojetor à querosene, os adultos foram eficazmente alfabetizados dentro do prazo indicado, em 40 horas de aula. Uma proeza. O presidente João Goulart foi à cerimônia de encerramento. O projeto exitoso seria implementado no restante do país, com Freire comandando o Plano Nacional de Alfabetização (PNA).
Seria. Futuro do pretérito. Sobreveio, em 1964, o golpe que derrubou João Goulart e empoderou os militares. Uma das providências inaugurais de Castelo Branco, primeiro dentre os ditadores, foi encerrar o PNA. Castelo, aliás, era o chefe da região militar e assistiu à última aula de Angicos, ao lado do presidente que depôs. Freire foi preso por 74 dias, sem acusação formal, exceto a de ser supostamente um subversivo comunista. Libertado, foi para o exílio na Bolívia, depois Chile, e de lá para Harvard, onde foi professor. Fixou-se, após, na Suíça, no Conselho Mundial de Igrejas. Trabalhou em países tornados recém-independentes, na África. Retornou ao Brasil em 1980, após a anistia, lecionando na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Foi, por breve período, secretário municipal de educação, em São Paulo. Escreveu obras como “A pedagogia do oprimido”, de 1968, e “A pedagogia da autonomia”, de 1996, que, entre várias outras seminais, fizeram a sua reputação gloriosa. Seu método foi difundido e sua filosofia segue estudada até hoje. Faleceu em 2 de maio de 1997, em decorrência de um infarto.
Um grupo de detratores gosta de vandalizar a sua biografia sem ao menos ter aberto um livro seu, por absoluta ignorância de sua trajetória, ou, mais grave, má-fé. É certo que, como qualquer autor, é possível criticá-lo honestamente dentro do campo das próprias ciências humanas, mas não é esse o ponto. O ponto é que, entre outras teratologias, diz-se que o posicionamento brasileiro no ranking de qualidade da educação é um dos piores do mundo e que, portanto, sua proposta filosófica foi um fracasso. Como se pudesse fracassar aquilo que jamais foi implementado à vera. Para esses vândalos, algumas palavras geradoras podem ser bem irritantes ou ameaçadoras nos tempos de hoje. Povo, voto, sonho, escola, trabalho, casa, carestia, gás, eletricidade, feijão, gasolina, panela e vacina, por exemplo.