ARACAJU/SE, 25 de abril de 2024 , 7:59:27

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O navio de Teseu

A narrativa, embora tenha variantes, é, no básico, bastante conhecida. O barco de 30 remos que teria levado Teseu e seus companheiros para Creta, a fim de enfrentar o Minotauro, ao retornar, foi preservado pelos gregos como símbolo da vitória sobre o monstro. À medida em que as madeiras apodreciam, eram substituídas por novas tábuas. Séculos depois, um estrangeiro pediu para conhecer o navio. Ao vê-lo, reclamou que aquele não seria o original, dado que não conteria mais nada da composição primitiva. Essa é uma alegoria do paradoxo da identidade do ser diante das transformações existenciais.

Plutarco, John Locke, Thomas Hobbes, Gottfried Leibnitz, Franz Kafka, entre tantos outros pensadores e escritores, cuidaram, em páginas célebres, do tema dos efeitos da mudança na identidade dos seres. A renovação de células transforma os indivíduos, a experiência também. O tempo é um fator de variação de tudo. O mesmo nome não conduz a uma mesma realidade, nem, às vezes, à mesma personalidade. 

Isso também vale para instituições? Outra discussão perturbadora. Veja-se, como exemplo, o caso da Constituição Federal de 1988. Seu texto original foi promulgado em 5 de outubro de 1988. Desde então, já sofreu seis emendas de revisão, mais 111 emendas constitucionais, além da incorporação de quatro tratados com status constitucional. Acresçam-se a isso as mutações informais, aquelas produzidas no âmbito da jurisprudência.

Um conjunto normativo tão alterado ainda é a mesma Constituição? Não é uma dúvida bizantina, um debate de sarau. Em 1969, foi editada a Emenda Constitucional nº 1, que desfigurou profundamente a Constituição de 1967. Os dois diplomas, editados autoritariamente, eram tão diferentes entre si que a literatura técnica os separa como duas constituições distintas, embora, formalmente, só a primeira tenha recebido esse nome ao ser outorgada.

O constituinte de 1987-88 quis proteger um núcleo e petrificou algumas cláusulas. Não foram poucas as proteções, felizmente. Isso garantiu, até hoje, que alguns direitos fundamentais não fossem demasiadamente corroídos e que alguns retrocessos drásticos fossem evitados. 

Portanto, toda vez que uma emenda é proposta, convém olhar se ela está em conformidade com o roteiro constitucional original. Embora exista liberdade de atualização de seus termos, não é raro que a iniciativa vá de encontro às peças imodificáveis da estrutura original. Cada intento de modificação deve ser analisado cuidadosamente a fim de que a atualização constitucional não sacrifique seus valores essenciais.

Às vezes, a mudança buscada é irrelevante. Esses dias, o Senado Federal aprovou uma proposta de emenda constitucional que inclui no rol de direitos fundamentais a proteção de dados pessoais (PEC 17/2019). É uma explicitação do que já existe, na redação original, sob forma de privacidade, intimidade, dignidade humana etc. 

Em outros casos, a modificação visada desperta batalhas políticas significativas, mas não é algo que afeta a medula constitucional. A Câmara dos Deputados, semana passada, rejeitou um substitutivo da PEC 5/21, que mirava na composição e atribuições do Conselho Nacional do Ministério Público, nascido ele próprio de uma emenda constitucional, a EC 45/2004. 

Mas, nem tudo é assim. Também na Câmara tramita a PEC 23/2021. Entre outras providências, ela visa dificultar o recebimento de precatórios, que são os créditos dos vencedores de processos judiciais contra o poder público. Depois de passar incontáveis anos em busca de seu direito, de vencer todas as etapas procedimentais e de haver identificado o crédito, o credor seria obrigado a vê-lo fatiado em anos, ou, pior ainda, para receber o quanto devido, seria imposto um deságio, uma desvalorização compulsória do montante já sacramentado.

É possível que tal ignomínia seja aprovada, embalada por propósitos eleitorais, já que tais medidas abrem margem para despesas assistenciais e outros investimentos estatais, ano que vem. Os recursos que seriam destinados à quitação dos precatórios servirão para tanto, mas esses gastos deveriam ter seu custeio buscado em outras fontes. Não é decente impor a pessoas que foram vítimas de violências diversas advindas do poder público, que tiveram de ir a juízo, que venceram processos longos, que somem mais esse suplício à via crucis judiciária.

Do ângulo jurídico, há de se pesquisar: no Texto de 1988, a ideia de Estado de Direito, a moralidade, a razoabilidade, o senso de justiça mínimo que se deve esperar da atividade legislativa, compunham o seu eixo central de preceitos? Se compunham, como se sabe que sim, o que se tem aqui não é uma troca de peças, mas a depredação da nau. Uma Lei Maior que venha a determinar que aqueles que vencem penosas e demoradas ações judiciais passem por mais esse martírio não tem identidade ética alguma com o livro que um dia recebeu o nome de Constituição Cidadã. Não é o mesmo navio heroico, mas uma réplica, uma constituição-pirata.