ARACAJU/SE, 23 de abril de 2024 , 3:33:35

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O observatório e o labirinto

O Supremo Tribunal Federal (STF), nos últimos anos, tem avançado em soluções cada vez mais sofisticadas quando defrontado a casos que envolvem agruras estruturais brasileiras. Goste-se ou não da ideia do Judiciário agindo de maneira cada vez menos contida, o fato é que ele tem imposto respostas que transcendem o debate entre partes e envolvem a determinação para que os poderes, especialmente o Executivo, promovam o equacionamento de disfunções orgânicas nacionais.

Para isso, o STF teve de construir as ferramentas processuais de viabilização dessas ordens inovadoras. Por exemplo: edificou a figura do habeas corpus coletivo. Lei alguma refere o habeas corpus como um instrumento de defesa da liberdade de grupos, havendo a referência expressa apenas ao seu manejo individual. Todavia, como para o mandado de segurança e para o mandado de injunção, que são tipos de procedimentos também radicados na Constituição Federal, existe a possibilidade da impetração coletiva, a jurisprudência estabeleceu uma analogia, uma ponte entre as formas processuais. Isso ocorreu a partir de 2018, no julgamento do Habeas Corpus Coletivo 143.641, relatado pelo Ministro Ricardo Lewandowski, que cuidou da situação de encarceramento de gestantes e mães de filhos até 12 anos. A 2.ª Turma do STF, por unanimidade, entendeu ser possível conceder a prisão domiciliar, ou medidas alternativas ao encarceramento, a todas as mulheres nessa situação, preenchidos alguns requisitos concernentes à periculosidade respectiva.

Não parou por aí. A recente decisão, de 21/08/2020, também proferida pela 2.ª Turma do STF, igualmente por unanimidade, no Habeas Corpus Coletivo 143.988, trouxe outra inovação. Esse processo discutiu a superlotação de unidades de internação de adolescentes infratores. A Corte estabeleceu critérios a serem observados pelos juízes diante desse cenário. Indicou, entre outras providências, a necessidade de liberação de nova vaga na hipótese de ingresso. Ordenou, também, a reavaliação dos adolescentes internados exclusivamente em razão da reiteração em infrações cometidas sem violência ou grave ameaça à pessoa.

Essa decisão dialoga com outra, de 2015, na qual o STF importou o conceito de “estado de coisas inconstitucional”, desenvolvido pela Suprema Corte da Colômbia. No julgamento da Medida Cautelar na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 347, o Supremo reconheceu como nesse quadro o sistema carcerário brasileiro. Ele ordenou que fossem tomadas medidas para correção desse absurdo, dentre elas a liberação dos recursos não aplicados do Fundo Penitenciário Nacional e a realização de audiências de custódia, que são aquelas nas quais o preso é levado à presença de um juiz, pouco após a captura, a fim de que o magistrado verifique a necessidade da manutenção da detenção e a legalidade da medida.

No caso dos adolescentes, evitando fechar os olhos a esse similar estado de coisas inconstitucional, por violação da dignidade da pessoa humana, obedecendo ao que a Constituição Federal reza em seus artigos 1.º, inciso III e 124, inciso V, o STF delineou as medidas acima, pelas quais um interno novo depende de um liberado, sempre que houver superlotação.

Como a resolução do problema da superpopulação internada adolescente demanda ações administrativas em diversas unidades federadas, foi preciso estabelecer um modo de fiscalização dos comandos do STF endereçados à erradicação dessa indignidade. Para isso, ele engendrou um Observatório Judicial, uma comissão temporária de análise da implementação das ordens proferidas nesse julgamento. A base normativa para tal grupo de trabalho seria o artigo 7º, inciso V, do Regimento Interno do STF, que autoriza a criação de comissões, pelo presidente da Corte.

Apesar de inteligente e inspirada pelas melhores intenções, a ideia precisa ser meditada. O esteio normativo parece ser forçado. É intuitivo que o Regimento disciplina, nesse caso, comissões internas, para a administração do próprio STF. Também é preciso saber quais competências e qual composição terá esse Observatório, a fim de que não avance sobre atribuições próprias dos órgãos dos demais poderes.

O experimento institucional do Observatório é uma boa oportunidade de se acompanhar o nascimento e o desenvolvimento de uma ferramenta jurídica. Também serve para ver como o desenho da separação entre os poderes está sendo refeito no Brasil. Em situações limítrofes, como a de violação em massa de direitos fundamentais, essas injunções estruturais são, possivelmente, a única via de desafogo. Mas ficam dúvidas: e quanto aos demais direitos essenciais (habitação, educação, trabalho, alimentação, saúde etc.)? Haverá a possibilidade de o Judiciário fixar o modo de atendimento deles e criar um observatório para cada qual? Ou o Judiciário, tanto quanto os demais poderes, quando provocado a decidir, poderá escolher quais direitos humanos, em situação de abandono calamitoso, priorizará? Por enquanto, para esse labirinto, parece não existir um fio de Ariadne.