ARACAJU/SE, 25 de abril de 2024 , 9:45:15

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O professor

No começo da tarde de 23 de maio de 1957, policiais da cidade de Cleveland, no Estado de Ohio, pediram permissão à Sra. Dollree Mapp para entrar em sua casa. Eles procuravam um fugitivo que, segundo uma denúncia anônima, estaria escondido nela. Eles também receberam informações de que uma grande quantidade de apetrechos relacionados a jogos de azar ilegais estava escondida ali. A Sra. Mapp fez contato com o seu advogado. Ele disse-lhe que, sem mandado, ninguém poderia adentrar, a menos que ela autorizasse. Ela, então, exigiu a ordem judicial. Houve um cerco no entorno da sua residência, por várias horas. Após esse tempo, a polícia forçou a entrada. Os agentes invadiram o ambiente e, quando confrontados com a Sra. Mapp, apresentaram algo que diziam ser um mandado. A Sra. Mapp tomou o documento das mãos do policial, escondendo-o dentro de sua roupa. Os policiais reagiram, revistaram-na e retomaram esse papel, que não era um mandado. Em seguida, algemaram-na e fizeram as buscas, nas quais não acharam o indivíduo procurado, mas encontraram livros e fotos “obscenos e lascivos”, que a lei local considerava crime possuir. Mais tarde, usaram esses impressos como prova para condenar a Sra. Mapp nos tribunais estaduais de primeira e segunda instâncias.   

Inconformada, a defesa foi até a Suprema Corte dos Estados Unidos. Esta tomou para si a seguinte questão: diante da clara ilegalidade da invasão do domicílio sem mandado, as provas obtidas em violação da cláusula de busca e apreensão da Quarta Emenda são admissíveis em um tribunal estadual?  No caso Mapp versus Ohio a decisão foi proferida aos 19 de junho de 1961, por 6 votos a 3, em favor da recorrente. As razões adotadas foram apresentadas pelo juiz Tom Campbell Clark, revertendo a jurisprudência estabelecida. Os precedentes vigorantes faziam uma interessante distinção baseada nas peculiaridades da estrutura federal estadunidense. 

Desde 1914, quando foi apreciado o caso Weeks versus Estados Unidos, entendia-se que o Governo Federal estava obrigado a excluir a prova obtida de modo ilícito, pois isso decorria da Quarta Emenda à Constituição, diretamente aplicável a ele. Por outro lado, os Estados, considerada a autonomia que possuíam, não estavam obrigados, necessariamente, a afastar do processo as evidências obtidas de modo ilegal. Eles poderiam, na forma de suas próprias leis, punir o abuso do funcionário público de outro modo, castigando-o disciplinarmente, autorizando uma ação indenizatória em razão da invasão de domicílio, entre outras possibilidades. A prova ilegalmente alcançada, contudo, poderia ser utilizada para condenar o acusado. O precedente de Mapp reverteu esse entendimento, que tinha sido ratificado poucos anos antes, no julgamento do caso Wolf versus Colorado, de 1949. Neste, a Suprema Corte, em apertada maioria de 5 a 4, afirmou que os Estados poderiam estabelecer, conforme lhes parecesse melhor, as consequências do acervo probatório granjeado por meio ilícito.  

Apesar do pouco tempo entre os dois julgamentos, a orientação da Suprema Corte foi modificada, o que não é muito comum por lá, onde a vida de uma diretriz interpretativa costuma ser longa. A Corte, naquele período, foi presidida pelo juiz Earl Warren, que imprimiu uma postura mais ativista ao comportamento judicial. Nesse momento, muitas compreensões foram revistas, inclusive no terreno penal, sendo o caso Mapp um dos exemplos mais relevantes. Enquanto a minoria dos juízes opunha-se à extensão de interpretações judiciais revisoras a temas já resolvidos, o norte da maioria era outro.  

No caso Mapp, o juiz Clark assinalou com elegância: “Não há guerra entre a Constituição e o bom senso. Atualmente, um promotor federal não pode fazer uso de provas apreendidas ilegalmente, mas um promotor estadual, do outro lado da rua, pode, embora ele supostamente esteja operando sob as proibições aplicáveis ​​da mesma Emenda. Assim, o Estado, ao admitir as provas apreendidas ilegalmente, atua para fomentar a desobediência à Constituição Federal que está obrigado a defender.” É um argumento possante. Mas o trecho mais sofisticado é a citação do voto vencido proferido pelo juiz Louis Brandeis, no julgamento de Olmstead versus Estados Unidos, de 1928: “Nosso governo é o poderoso, o onipresente professor. Para o bem ou para o mal, ele ensina todo o povo com seu exemplo (…). Se o governo se torna um violador da lei, ele gera o desprezo por ela; ele convida todo homem a se tornar uma lei para si mesmo; isso convida à anarquia.” 

No Brasil, a prova ilícita é declarada inadmissível na Constituição e em toda a legislação processual penal, que é de competência da União. Nada obstante, o debate sobre o papel do governo na cultura do respeito à lei é plenamente atual, por aqui. Ele poderia ser melhor professor, com certeza.