ARACAJU/SE, 24 de abril de 2024 , 0:18:02

logoajn1

O que restou da loja de papai

Da loja de papai, Loja Carvalho, quase nada guardei. Quando as atividades foram encerradas, estudando e trabalhando no Aracaju, nada soube. À época, idos de setenta, tampouco indicaria o que, de lá, teria conservado. O desejo já nasceu morto, depois. Naqueles dias, nenhum pensamento nesse sentido me povoou a cabeça. Então, tudo deve ter integrado a lata de lixo, pela ausência de serventia. E lá se foi uma parte da memória da loja de papai.

No meio, o quadro com a frase: Deus te dê em dobro tudo quanto me desejares. Também um outro, com fundo esverdeado, coberto de ponta a ponta por um plástico que o cobria totalmente, dele saindo o cordão  para ser pendurado na parede. Dois comerciantes. Um gordo, terno completo, colete, relógio de bolso à vista, o fundo trazendo o estoque da casa, e o ditado: Eu vendi a dinheiro. No outro, o comerciante magro, camisa sem gravata, pés no chinelo, rosto pálido e cadavérico, que eu achava parecido com Tonico, filho de Antonio Vasconcelos, comerciante do outro lado da praça, que, de vez em quando, aparecia. O que estava escrito: Eu vendi fiado. A lição de alerta, e, também, a de que quem vende a dinheiro engorda.

De quadro, ficou apenas um, pequeno, do padre Cícero, o cajado na mão, o cabelo branco, que papai levou para casa, e, muitos anos depois, ficou em frente a pia ao lado da porta que dava para o segundo banheiro da casa nova, construída no quintal da antiga.

Acrescento um lápis, da Monarck, com o calendário do ano de 1962, lápis de um palmo, a ponta grossa, ainda feita por papai. Está no meu poder. E mais duas fotos, por mim captadas: papai sentado ao lado do balcão. Outra, da frente da loja, tendo as demais lojas do trecho como companhia. No mais, a imagem sempre viva dele, de camisa amarronzada, de manga curta,  com quatro bolsos, uma tesoura em um deles, o cigarro na boca, a caneta pronta a anotar as mortes que lhe chegavam ao conhecer.  As cadernetas, desde seu óbito, estão comigo.

Registro, enfim, o velho cofre, de cor verde, levado para casa quando vendeu a loja.  Não o vejo desde que mamãe morreu, o receio danado das lembranças que dele podem escapar…