ARACAJU/SE, 19 de abril de 2024 , 7:18:21

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O sétimo mandamento

George Orwell publicou A revolução dos bichos, em 1945. É uma fábula que satiriza o advento de totalitarismos sob o fundamento da busca da igualdade. Os animais, ao tomarem o poder dos homens numa fazenda, editam mandamentos em busca dessa utopia. O sétimo deles dizia “todos os animais são iguais”. As coisas, entretanto, não fluíram como esperado, o sonho se tornou pesadelo e os porcos estabeleceram uma ditadura.

A arte tem muito a ensinar à vida. Tal como no romance orwelliano, na realidade, essa isonomia animal não é tão simples de alcançar. Em 30.09.2020, entrou em vigor a Lei 14.064/2020. Por ela, o artigo 32 da Lei 9.605/98, que dispõe sobre os crimes ambientais, ganhou um novo parágrafo. Segundo a regra geral, praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos dá ensejo à detenção, de três meses a um ano, e multa. Porém, desde o último dia 30, quando se tratar de cão ou gato, a punição para as condutas descritas passou a ser de reclusão, de dois a cinco anos, multa e proibição da guarda. Apesar das aparentes boas intenções, a norma é ruim, seja do ponto de vista da coerência interna, seja do prisma da conexão externa, seja pelo viés da consistência ética subjacente.

A um, a regra parte de premissa criminologicamente criticável: supõe que a elevação de castigos é adequada para prevenir a infração. A ideia é contrastada pela experiência. Incontáveis crimes tiveram penas elevadas nos últimos tempos sem qualquer sinal de redução da criminalidade. A regra nova é mais um incentivo ao encarceramento. Misturará nas prisões quem chuta um bichano com quem mata uma pessoa. A dois, o comando promove uma hierarquização animal. Uma coisa é mutilar um cavalo ou um hamster. Outra, considerada cinco vezes mais grave, é fazer o mesmo com um cachorro ou um gato. Para equinos, a repreensão legal é limitada a um ano de detenção. Para caninos e felinos, cinco anos de reclusão. Não há sentido algum nisso. A três, segundo o artigo 136 do Código Penal, os maus tratos a seres humanos geram detenção de dois meses a um ano, ou multa. Se houver lesão corporal grave, eleva-se a punição para reclusão de um a quatro anos. Mesmo as situações de violência doméstica, previstas no artigo 129 do mesmo Código, têm corretivo de 3 meses a 3 anos.  Conclusão: ferir um cão ou um gato é mais reprovável que machucar uma pessoa, ainda que esta more com você.

É necessário lembrar que, no sistema punitivo brasileiro, as penas são parâmetros para o processamento do acusado. Então, para ofensas a animais domésticos “comuns” permite-se um rito simplificado, a partir de termo circunstanciado, com possibilidade de transação penal (acordo, antes do oferecimento da acusação formal) e suspensão do processo. Assim também para a forma básica dos maus tratos a pessoas. Em caso de flagrante, esses admitem fiança perante o delegado de polícia. Mas, para cães e gatos, a coisa é diferente. Uma denúncia deve ser oferecida, sem possibilidade desses benefícios.

É possível sustentar que talvez o engano seja a da baixa censura aos maus-tratos humanos. Se fosse, a solução legislativa passaria pela readequação dessa situação, garantindo alguma harmonia ao ordenamento jurídico. O problema é que isso desencadearia, em nome da coesão interna do sistema normativo, a necessidade de elevação das sanções de todo e qualquer delito contra a integridade física humana: lesões corporais leves, graves, gravíssimas e com resultado morte, homicídios simples e qualificados e também os estupros, os latrocínios e diversos outras infrações. Haveria uma explosão de encarceramento.

Além desses problemas jurídicos manifestos, há outro, de ordem moral. O Legislador quis dialogar com uma faixa da população – logo, dos eleitores – que enxerga os animais como merecedores de amor, e, por isso, de maior proteção. Mas, ao fazê-lo, elevou a carga de “especismo” existente no direito brasileiro. Segundo Peter Singer, filósofo australiano estudioso dos problemas éticos, em seu clássico Libertação Animal, de 1975, especismo “é um preconceito ou atitude de favorecimento dos interesses dos membros de uma espécie em detrimento dos interesses dos membros de outras espécies”. Ele estima que do mesmo modo como o racismo é hoje universalmente condenável, mas antes era praticado com beneplácito legal, haverá o tempo em que o comportamento humano em relação às demais espécies causará idêntica repugnância.

É muito estranho o advento da lei que protege os “pets” na mesma época em que milhões de outros seres literalmente queimam vivos no Pantanal, no Cerrado e na Amazônia, sem que o Congresso esboce reações significativas em defesa deles. Isso faz recordar que, no enredo dos bichos de Orwell, foi adaptado o mandamento capital: “todos os animais são iguais, mas alguns animais são mais iguais do que os outros”.