ARACAJU/SE, 24 de abril de 2024 , 14:34:17

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O silêncio normativo: (in)satisfatoriedade como limite incômodo

Ronivon de Aragão

Juiz federal e membro da Academia Sergipana de Letras Jurídicas.

 

Em anterior artigo neste jornal, defendi que o silêncio é a “fronteira” do ordenamento, o qual se preocupa, de forma mais direta, somente com o dito e, em especial, com o texto escrito.

Afirmei que, não fosse a lacuna (ou outra forma de silêncio), o direito seria tido como elemento suficiente e pleno para exercer normatividade sobre todos os fatos da vida, presentes e vindouros. E, assim, tudo seria direito e nada poderia diferenciar o direito de outras fontes de normatividade. O silêncio não é, pois, uma demonstração da fraqueza do fenômeno jurídico, mas elemento essencial para definir a exata fronteira entre o jurídico e o não-jurídico.

Há problemas gerados pela transposição do discurso que se hospedava na mente do legislador e a forma simbólica como foi gravado na escrita, porque “a inscrição torna-se sinônimo de autonomia semântica do texto, que resulta da desconexão da intenção mental do autor relativamente ao significado verbal do texto” (RICOEUR, 1976, p. 41). É que “a carreira do texto subtrai-se ao horizonte finito vivido, pelo seu autor. O que o texto significa interessa agora mais do que o autor quis dizer, quando o escreveu” e, por isso, “o conceito de autonomia semântica é de imensa importância para a hermenêutica” (RICOEUR, 1976, p. 41).

O silêncio normativo pode ser qualificado como uma lacuna ou como um silêncio eloquente. Para que se tenha um silêncio normativo, “a interpretação dos significantes jurídicos leva o sujeito cognoscente à conclusão, v.g., de que a conduta efetiva tal não tem qualificação jurídica, eis que o seu predicado não está contido no valor da ilicitude ou licitude” (ALMEIDA, 2014, p. 166). Para o autor, a questão essencial que é posta diz respeito à diferença entre a lacuna e o silêncio eloquente, que se refere à insatisfatoriedade do silêncio normativo (ALMEIDA, 2014, p. 170).

E dá-se a insatisfatoriedade do silêncio normativo, quando a fronteira estabelecida entre o discurso jurídico e o não-jurídico se esgarça. A partir daí a força assumida pelos fatos em conexão com a pretensão de normatividade que possui o direito assume o protagonismo. Desse embate expõe-se a lacuna (forma de silêncio incômodo) que deve ser tratada como o espaço de conformação limítrofe entre o fato apto para a normatividade do direito e o fato que deita sua liberdade em outros campos do fenômeno das normas.

Essa tensa relação “fato – norma – fato”, a revelar a satisfatoriedade ou a insatisfatoriedade do silêncio, perpassa também os conceitos do que se denomina de “situação extrajurídica” e dos chamados “espaços livres do direito”.

Tem-se por situação extrajurídica os casos que não importam ao direito, por não possuírem uma relevância jurídica para que ingressem no catálogo jurídico das situações normadas (ASCENSÃO, 1995). É o indiferente jurídico, por se tratar de fato que, na linguagem do direito penal, é atípico; assim, na teoria do direito, atípico seria aquele fato desinteressante para o ordenamento jurídico.

Os espaços livres do direito ou espaços jurídicos livres, na acepção de Castanheira Neves, podem ser tidos como situações em que o direito fica alheio àquela realidade. Considera o autor português que “o que está essencialmente em causa é saber até onde e em que termos deverá o direito atingir a vida humana, ou enquanto será exigível e justificado que ele a atinja como sua dimensão prático-constitutiva” (NEVES, 1993).

Tudo isso tem relação direta com o conceito de significância – ou insignificância – daquele fato para integrar o rol de condutas aptas à normatividade jurídica.

Referências:

ALMEIDA, Júlio César de. Retórica dos silêncios normativos & lacunas no direito: separação entre texto e norma à luz de uma releitura de Kelsen. Curitiba: Juruá, 2014.

ASCENSÃO. José de Oliveira. O Direito. Introdução e Teoria Geral. Uma perspectiva luso-brasileira. Coimbra: Almedina, 1995.

NEVES, António Castanheira. Metodologia Jurídica. Problemas Fundamentais. Coimbra: Coimbra Editora, 1993.

RICOEUR, Paul. Teoria da interpretação – o discurso e o excesso de significação. Tradução de Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 1976.