ARACAJU/SE, 23 de abril de 2024 , 12:55:50

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O VAR flamenguista

No Brasil, de uns tempos para cá, toda vez que há um caso polêmico sendo decidido nos tribunais, levantam-se torcidas organizadas em favor dos lados contendores. Quem perde, reclama. Quem ganha, comemora. Um grupo, no entanto, fica no meio, queixando-se que as regras deveriam ser mais claras e que os julgadores precisariam ser submetidos a comandos que predeterminassem forçadamente a deliberação. Eis aí uma das utopias do direito: a da solução única para o problema concreto.

Um grande pensador, Hans Kelsen, após limitar o objeto do estudo do direito à norma jurídica, concebeu a ideia de que a interpretação dela caberia dentro de uma “moldura”. De um certo texto normativo poderiam emergir várias soluções identicamente válidas para o mesmo problema. Por isso, a escolha de uma delas, desde que dentro desse quadro, seria algo que não competiria propriamente ao direito, mas à política, à psicologia, às áreas de conhecimento externas a ele. Quem decide, pode escolher, desde que não escape da moldura. Trata-se, ao fim e ao cabo, de um ato de vontade.

Herbert L. A. Hart, professor da Universidade de Oxford, também considerando as dificuldades de previsão de solução para todos os problemas pelo legislador e a imprecisão natural da linguagem, considerou que a norma jurídica teria uma “textura aberta”. Por isso, inevitavelmente, quem decide tem uma certa discricionariedade.

Outro grande teórico, Ronald Dworkin, sucessor de Hart em Oxford, reviu essa perspectiva. Incomodava-o que os juízes pudessem criar a solução dos problemas. Ele imaginou uma figura simbólica: a do “juiz Hércules”. Esse ser ideal dominaria todas as possibilidades de reconhecimento dos fatos subjacentes à decisão, apreciaria todas as normas, identificaria as consequências de todas as soluções possíveis e conheceria a comunidade em que inserido o conflito. Com base nesse acervo de dados, adotaria a resolução necessariamente certa, até mesmo para os casos mais difíceis. Ele agiria vinculado aos princípios reitores do sistema e com um vigoroso sentido de equidade.

Óbvio que se trata de uma ideia reguladora, uma técnica. Deve-se imaginar que exista essa hipótese para construir as ferramentas de pesquisa e controle do resultado do conflito ou de organização da situação problemática. Por isso, quanto mais difícil for chegar a uma conclusão, em especial quando a regra não parece existir ou não é clara, mais importante se torna o dever do decisor de argumentar consistentemente. Ao argumentar, ele será fiscalizável e se poderá saber se o que se encontrou é mais conforme o direito, ou mais fruto da sua subjetividade (e, portanto, do seu poder). Por ser uma hipótese, Dworkin reconhece que não há garantia de que todos os juízes darão a mesma resposta para as mesmas questões. A possibilidade de existir uma resposta certa, contudo, anima o esforço de sua busca e justificação racional.

Essa a expectativa de uma solução ideal anima o imaginário coletivo, para além do direito. O maior entretenimento do planeta, o futebol, foi recentemente alcançado por ela. O desejo de que gols e lances decisivos escapem à falibilidade dos sentidos e da interpretação do trio de arbitragem gerou o nascimento do árbitro de vídeo, o VAR (“video assistant referee”). Uma bancada de assistentes, após o lance, faz uma revisão, usando as câmeras dispostas no campo e instrumentos de tecnologia. Depois, ela recomenda a validação ou a revogação da decisão adotada dentro das quatro linhas.

Porém, nem com essa cautela, os erros foram banidos. Há poucos dias, na final do campeonato mundial de clubes, o Bayern de Munique marcou um gol que foi verificado. Não se considerou que a bola tocou irregularmente na mão do atacante Lewandowski, o melhor jogador da atualidade. Tento irregular validado. No último domingo de carnaval, o Flamengo marcou um gol suspeito de haver sido realizado em posição de impedimento, mas que foi confirmado, sob protestos dos adversários corinthianos. Estes até hoje discutem se o momento em que a imagem foi paralisada para aferir se o atacante Gabigol estava em posição regular foi o mais correto. Um milissegundo a mais ou a menos e o entendimento seria distinto. Na rodada passada, o lateral Rodinei, do Internacional, com a intervenção do VAR, foi expulso por uma falta que muitos especialistas disseram que justificaria o cartão amarelo, ao tempo em que outros disseram que o cartão vermelho foi justo. A exclusão do jogador facilitou a vitória rubro-negra, dando-lhe a liderança do campeonato.

São questões de interpretação de regras e de sua conexão com a situação concreta. Onde há fatos e normas, a subsunção não será mecânica. Não há perfeição absoluta. O juiz Hércules não existe e o VAR sempre poderá ser acusado de ser flamenguista. Justa ou injustamente.