Em 1829, Victor Hugo publicou “O Último Dia de um Condenado”. Posicionou-se, nele, contra a pena de morte. Pôs-se contra o deplorável espetáculo público da guilhotina e de como ela, apesar de rápida em alcançar o seu efeito fatal, era precedida de suplícios psicológicos intensos, desde a prolação da decisão capital até o instante em que a lâmina desce. Produziu um clássico.
A genialidade da obra quase bicentenária não está na descrição do crime ou no comportamento delinquente do criminoso. O autor propositalmente nega ao leitor essa informação. Não é dado saber nem sequer o nome do homem, tampouco o que ele fez. A obra, “aberta”, força o leitor a abandonar o conforto do julgamento moral e a confrontar uma única realidade: a tortura psicológica do Estado que marca dia e hora para ceifar uma vida. O livro é um manifesto sobre o suplício da antecipação da hora mais temida, o horror de ver o relógio avançar inexoravelmente para a guilhotina. É também um questionamento ético sobre uma sociedade que se juntava em praça pública para se deliciar com o espetáculo do homicídio retributivo estatal.
Quando argumentos sobre pena de morte são postos, quase sempre geram o entrincheiramento dos debatedores. Os que pensam na pena como retribuição justificam-na, especialmente porque destinada a crimes atrozes. Os que enxergam como um péssimo exemplo de (des)humanidade, os que temem o risco de irreversibilidade, põem-se no lado oposto. Normalmente, há impasse e ninguém escuta ninguém.
A arte ajuda a ver as coisas por outros ângulos. A literatura é ferramenta essencial para “desautomatizar” posições. Ela convida o leitor a viver outras vidas, a explorar os limites existenciais e a desenvolver empatia (embora não necessariamente simpatia). Sem ela, “execução” é uma palavra asséptica, um conceito jurídico abstrato. Com ela, é o pânico de um homem que ouve os ferreiros montarem o cadafalso, a azeitarem polias e amolarem uma lâmina inclemente.
Alabama, outubro de 2025. O tema é o mesmo, mas o condenado agora tem nome: Anthony Boyd. Não mais se trata de ficção.
Boyd está no corredor da morte. Ele, como qualquer cidadão, usou os mecanismos do direito e fez dois pedidos à Suprema Corte dos Estados Unidos: suspensão da execução de sua pena de morte e análise de um recurso contra a condenação.
Agora também se sabem os fatos. Era 1993 quando Gregory Huguley perdeu a vida numa morte cruel, resultado de uma vingança por dívida de drogas no coração do Alabama. 200 dólares. Por isso, foi queimado vivo. Anthony Boyd, entre os acusados, foi condenado à morte por um júri de maioria simples (10 votos a 2), num condado que ostentava a tétrica liderança nas sentenças de morte estaduais. Não houve evidência física: nenhum vestígio de impressões digitais, nenhum DNA. Contra ele, apenas um depoimento, de outro corréu, beneficiado por acordo com a acusação, para fugir da pena a que Boyd foi condenado.
Sob um sistema processual que paga pouco ao defensor público, Boyd, negro, assistiu aos seus julgamentos com advogados mal remunerados e com pouco tempo para se preparar. O veredito foi implacável: sentença capital por cumplicidade com o homicídio. Da prisão, o condenado sempre proclamou sua inocência. Usou a própria causa como coordenador do “Projeto Esperança para Abolir a Pena de Morte”.
Saltam décadas. O processo acabou em 1995. Chegou a hora de executar o castigo determinado. Em nome da modernidade, o Alabama inaugura um método de execução: hipóxia de nitrogênio. Experimental, celebrado como “humano”, revela-se cruel nas análises e nos depoimentos de especialistas e testemunhas.
Boyd, já ciente das evidências de sofrimento extremo por sufocação, pede ao sistema de justiça apenas “graça mínima”: morrer por pelotão de fuzilamento. Ter segundos de dor e seu fim, não minutos de tortura por asfixia.
Depois de fracassar em primeira instância, recorreu ao Tribunal Federal do 11º Circuito e discutiu a constitucionalidade do processo de execução por esse meio. Sem sucesso. O entendimento judiciário, em ambas as instâncias, foi que o condenado deve colaborar com a própria execução: não deve prender a respiração, deve inalar o gás venenoso. Deve deixar-se morrer/matar com mais facilidade.
Boyd, então, bateu às portas da Suprema Corte. Perdeu de novo. Nessa etapa final, três juízas, Sotomayor, Kagan e Jackson, em voto divergente redigido pela primeira e apoiado pelas demais, confrontaram a maioria. Elas denunciaram a brutalidade do método e registraram a força do direito à dignidade até o último respiro. Literalmente.
Sotomayor explicou em detalhes: descreveu o condenado, por quatro minutos ou mais, em busca de ar, prisioneiro dos instintos, consciente de que cada inspiração o mataria. Convulsões violentas, mente em terror absoluto. Afirmou que isso era uma das mais cruéis práticas da história estadunidense. Que não tinha cobertura na 8ª Emenda, que impede penas assim. Narrou casos de execuções anteriores e como elas provocaram “respiração agônica” duradoura nos condenados. Citou precedentes da própria Suprema Corte.
Boyd achara seu Victor Hugo. Debalde: seis julgadores negaram os pedidos, sem necessidade de fundamentar o entendimento, apenas por validação das posições dos demais graus de julgamento.
Em 23 de outubro de 2025, a cortina se abriu no presídio de Holman. Boyd, aos 54 anos, fez sua última declaração: “Não matei ninguém. Não participei disso.” O ritual do gás consumiu seu tempo. Começou exatamente às 17h57 e só foi concluído às 18h27. O óbito foi atestado às 18h33.
Testemunhas afirmaram que ele permaneceu consciente por pelo menos 16 minutos. Contaram mais de 225 respirações arrastadas. As testemunhas relataram movimento e sofrimento visíveis, até a imobilidade final.
É absolutamente estranhável que uma nação democrática ocidental, símbolo autoproclamado de direitos civis, legitime tamanho suplício em nome de uma ideia de justiça. O voto vencido salva-se dessa barbárie e registrou que permitir esse experimento nitrogenado é falhar em proteger a dignidade que define a nação que os EUA desejam ser. Contudo, a maioria na Suprema Corte dos Estados Unidos, cada vez mais encapsulada em si mesma, fechou os olhos para esse argumento.
É possível questionar se a França pós-napoleônica, quando Victor Hugo redigiu seu romance-denúncia, ao usar a indolor guilhotina, não estaria em estágio evolutivo mais humanista que os EUA, hoje, por seu mais alto órgão judiciário. A pena é de morte, mas não de morte dolorosa, sem pena.