ARACAJU/SE, 13 de novembro de 2025 , 23:06:45

Paris-Alabama

Em 1829, Victor Hugo publicou “O Último Dia de um Condenado”. Posicionou-se, nele, contra a pena de morte. Pôs-se contra o deplorável espetáculo público da guilhotina e de como ela, apesar de rápida em alcançar o seu efeito fatal, era precedida de suplícios psicológicos intensos, desde a prolação da decisão capital até o instante em que a lâmina desce. Produziu um clássico.

A genialidade da obra quase bicentenária não está na descrição do crime ou no comportamento delinquente do criminoso. O autor propositalmente nega ao leitor essa informação. Não é dado saber nem sequer o nome do homem, tampouco o que ele fez. A obra, “aberta”, força o leitor a abandonar o conforto do julgamento moral e a confrontar uma única realidade: a tortura psicológica do Estado que marca dia e hora para ceifar uma vida. O livro é um manifesto sobre o suplício da antecipação da hora mais temida, o horror de ver o relógio avançar inexoravelmente para a guilhotina. É também um questionamento ético sobre uma sociedade que se juntava em praça pública para se deliciar com o espetáculo do homicídio retributivo estatal.

Quando argumentos sobre pena de morte são postos, quase sempre geram o entrincheiramento dos debatedores. Os que pensam na pena como retribuição justificam-na, especialmente porque destinada a crimes atrozes. Os que enxergam como um péssimo exemplo de (des)humanidade, os que temem o risco de irreversibilidade, põem-se no lado oposto. Normalmente, há impasse e ninguém escuta ninguém.

A arte ajuda a ver as coisas por outros ângulos. A literatura é ferramenta essencial para “desautomatizar” posições. Ela convida o leitor a viver outras vidas, a explorar os limites existenciais e a desenvolver empatia (embora não necessariamente simpatia). Sem ela, “execução” é uma palavra asséptica, um conceito jurídico abstrato. Com ela, é o pânico de um homem que ouve os ferreiros montarem o cadafalso, a azeitarem polias e amolarem uma lâmina inclemente.

Alabama, outubro de 2025. O tema é o mesmo, mas o condenado agora tem nome: Anthony Boyd. Não mais se trata de ficção.

Boyd está no corredor da morte. Ele, como qualquer cidadão, usou os mecanismos do direito e fez dois pedidos à Suprema Corte dos Estados Unidos: suspensão da execução de sua pena de morte e análise de um recurso contra a condenação.

Agora também se sabem os fatos. Era 1993 quando Gregory Huguley perdeu a vida numa morte cruel, resultado de uma vingança por dívida de drogas no coração do Alabama. 200 dólares. Por isso, foi queimado vivo. Anthony Boyd, entre os acusados, foi condenado à morte por um júri de maioria simples (10 votos a 2), num condado que ostentava a tétrica liderança nas sentenças de morte estaduais. Não houve evidência física: nenhum vestígio de impressões digitais, nenhum DNA. Contra ele, apenas um depoimento, de outro corréu, beneficiado por acordo com a acusação, para fugir da pena a que Boyd foi condenado.​

Sob um sistema processual que paga pouco ao defensor público, Boyd, negro, assistiu aos seus julgamentos com advogados mal remunerados e com pouco tempo para se preparar. O veredito foi implacável: sentença capital por cumplicidade com o homicídio. Da prisão, o condenado sempre proclamou sua inocência. Usou a própria causa como coordenador do “Projeto Esperança para Abolir a Pena de Morte”.​

Saltam décadas. O processo acabou em 1995. Chegou a hora de executar o castigo determinado. Em nome da modernidade, o Alabama inaugura um método de execução: hipóxia de nitrogênio. Experimental, celebrado como “humano”, revela-se cruel nas análises e nos depoimentos de especialistas e testemunhas.

Boyd, já ciente das evidências de sofrimento extremo por sufocação, pede ao sistema de justiça apenas “graça mínima”: morrer por pelotão de fuzilamento. Ter segundos de dor e seu fim, não minutos de tortura por asfixia.

Depois de fracassar em primeira instância, recorreu ao Tribunal Federal do 11º Circuito e discutiu a constitucionalidade do processo de execução por esse meio. Sem sucesso. O entendimento judiciário, em ambas as instâncias, foi que o condenado deve colaborar com a própria execução: não deve prender a respiração, deve inalar o gás venenoso. Deve deixar-se morrer/matar com mais facilidade.

Boyd, então, bateu às portas da Suprema Corte.​​ Perdeu de novo. Nessa etapa final, três juízas, Sotomayor, Kagan e Jackson, em voto divergente redigido pela primeira e apoiado pelas demais, confrontaram a maioria. Elas denunciaram a brutalidade do método e registraram a força do direito à dignidade até o último respiro. Literalmente.

Sotomayor explicou em detalhes: descreveu o condenado, por quatro minutos ou mais, em busca de ar, prisioneiro dos instintos, consciente de que cada inspiração o mataria. Convulsões violentas, mente em terror absoluto. Afirmou que isso era uma das mais cruéis práticas da história estadunidense.​​ Que não tinha cobertura na 8ª Emenda, que impede penas assim. Narrou casos de execuções anteriores e como elas provocaram “respiração agônica” duradoura nos condenados. Citou precedentes da própria Suprema Corte.

Boyd achara seu Victor Hugo. Debalde: seis julgadores negaram os pedidos, sem necessidade de fundamentar o entendimento, apenas por validação das posições dos demais graus de julgamento.

Em 23 de outubro de 2025, a cortina se abriu no presídio de Holman. Boyd, aos 54 anos, fez sua última declaração: “Não matei ninguém. Não participei disso.” O ritual do gás consumiu seu tempo. Começou exatamente às 17h57 e só foi concluído às 18h27. O óbito foi atestado às 18h33.

Testemunhas afirmaram que ele permaneceu consciente por pelo menos 16 minutos. Contaram mais de 225 respirações arrastadas. As testemunhas relataram movimento e sofrimento visíveis, até a imobilidade final.

É absolutamente estranhável que uma nação democrática ocidental, símbolo autoproclamado de direitos civis, legitime tamanho suplício em nome de uma ideia de justiça. O voto vencido salva-se dessa barbárie e registrou que permitir esse experimento nitrogenado é falhar em proteger a dignidade que define a nação que os EUA desejam ser.  Contudo, a maioria na Suprema Corte dos Estados Unidos, cada vez mais encapsulada em si mesma, fechou os olhos para esse argumento.

É possível questionar se a França pós-napoleônica, quando Victor Hugo redigiu seu romance-denúncia, ao usar a indolor guilhotina, não estaria em estágio evolutivo mais humanista que os EUA, hoje, por seu mais alto órgão judiciário. A pena é de morte, mas não de morte dolorosa, sem pena.