ARACAJU/SE, 24 de abril de 2024 , 2:23:58

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Primeiro, o fato; depois, muito depois, a lei

Se a lei não cria, a doutrina se antecipa, o advogado lança o instrumento no ar e o Judiciário, aos poucos, vai se acostumando, até que se torna uma realidade, mesmo se cuidando de instrumento processual que não nasceu da barriga da norma, nem a norma, depois, o reconheceu. É o caso da exceção de pré-executividade, criação única da doutrina, de tal forma presente e atuante que o Superior Tribunal de Justiça decidiu caber nela condenação em honorários advocatícios, mesmo sendo apenas um pedido, sem comportar dilação probatória, que  poderia ser substituído por uma simples petição nos próprios autos da execução.  A invocação da exceção de pré-executividade é uma forma de ganhar honorários advocatícios sem muito suor, a força da atração exercida pelas minas de prata que o vigente Código de Processo Civil, na matéria, trouxe à tona. Atira-se num alvo, a fim de, obliquamente, acertar o outro.  

Novo exemplo, agora com maior amplitude, se revela na ação movida pelo particular em desfavor da União, Estado e Município, perseguindo um bem de vida sintetizado em um remédio, em tratamento via internamento, incluindo-se a cirurgia e até mesmo o transporte da casa ao centro médico. O pedido se calca no art. 196, da Constituição, e, até agora, é, salvo engano de minha parte, a única demanda desprovida de lei para lhe embasar. Não há um só diploma a traçar as diretrizes devidas, parecendo o absurdo caso do filho que nasce sem pai e sem mãe, existindo mesmo sem o respaldo da lei. Apenas a Constituição faz o papel de mãe, e, mesmo assim, de maneira não tão clara e direta.

Sem a presença da lei, o Judiciário ocupa o espaço que o Legislativo deixa vazio. O exemplo está no fato do Supremo Tribunal Federal apontar os requisitos que devem ser atendidos ante o pedido de fornecimento de fármaco e/ou de internamento hospitalar. Ou seja, a reiteração do dia a dia legitimou a demanda, ficando os contornos de tudo entregues ao Judiciário, a estabelecer prazos para fornecimento de fármaco, geralmente exíguos, para a Administração Pública, em suas três esferas – União, Estados e Municípios – se movimentar, presas as despesas com a justificativa devida, pareceres médicos, jurídicos e financeiros, aprovações desse e daquele setor, animal, extremamente pesado, que não deambula com facilidade, sujeito a segurança que deve tornear a liberação de recursos,  a fim de atender as ordens judiciais. O mais se dança pelos acordes do Código de Processo Civil. 

A demanda em tela se firmou na teimosia, na reiteração, a pretensão se revestindo das cores da legalidade do direito buscado, a força de pessoas desprovidas de condições financeiras, de um lado, e de outro, a necessidade do Poder Público responder presente aos pleitos, onde a pressa da moléstia de cada um anda em descompasso com a burocracia estatal, ficando o Judiciário com a batata quente nas mãos, fechando os olhos para a ausência de uma lei específica, e, assim, com sua decisão, atingir ou tentar atingir o bem de vida perseguido, quando o tempo permite e o paciente sobrevive à espera da solução buscada.

O legislador anda com as pernas curtas. Foi o que aprendemos no início do curso jurídico. E é a santa verdade. O Código de Processo Civil buzaideano desconheceu completamente a Justiça Federal, apesar dos seus cinco anos de funcionamento. A Lei de Execução Penal, dos idos de 1984, onze anos depois do diploma processual civil, só abarca à jurisdição penal dos Juízes ou Tribunais da Justiça ordinária em todo o Território Nacional [art. 2º], aplicando-se, igualmente, ao preso provisório e ao condenado pela Justiça Eleitoral ou Militar [parágrafo único, idem]. Da Justiça Federal, nenhuma alusão.

O Código de Processo Civil vigente abriu as porteiras para o Juízo Federal, a ele referindo-se, no traslado de dispositivos da Constituição atinentes à competência das causas em que a União é parte, reiterando a competência do juiz federal para o auxilio direto, na sombra do que o Texto Maior faz com a execução de sentença estrangeira e o cumprimento de rogatória.  A Justiça Federal, assim e enfim, recebeu a abençoa do legislador ordinário, materializada na alusão a seção ou subseção judiciária, na inclusão dos dois ao lado das comarcas, afagos que, afinal, simbolizam o reconhecimento da Justiça Federal, ainda que tardios, na demonstração da velha verdade do legislador demorar a se acordar para as realidades do dia a dia.

Contudo, na advertência de Tobias Barreto, apesar de apregoada em outras circunstâncias factuais, isso não é motivo para desânimo.  

 

Vladimir Souza Carvalho 

Magistrado – membro da Academia Sergipana de Letras Juridicas.