ARACAJU/SE, 25 de abril de 2024 , 5:13:27

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Quatro exclamações

Às vezes, no âmbito jurídico, tem-se a impressão de que as pessoas trabalham como se o direito presente não tivesse um passado. Faz-se, frequentemente, o estudo de um determinado problema com a baliza exclusiva do que está escrito, sem maiores aberturas contextuais. Não é incomum tentar interpretar a lei de modo desassociado da história de sua produção ou do local de sua aplicação. É mais ou menos como querer entender uma novela assistindo apenas ao último capítulo. Não vai funcionar.

Assim, quem lê o artigo inicial da Constituição Federal, que proclama que a República Federativa do Brasil é um Estado Democrático de Direito (com maiúsculas, inclusive), precisa entender que a enunciação deseja ir além da retórica, eis que fatos graves exigiram essa declaração inaugural, aparentemente óbvia.

Qualquer curioso pode constatar isso comparando-o com os primeiros artigos dos diplomas constitucionais revogados. As Constituições de 1891 e 1934 falavam em regime representativo, somente. A de 1937 dizia que o poder emanava do povo (embora instaurasse uma ditadura horrenda). A de 1946 fundiu as proclamações anteriores, e, embora com vocação democrática, não vocalizou o Estado brasileiro expressamente assim. A de 1967-69, com evidente farisaísmo, manteve a estrutura vocabular antecedente, embora formatasse um regime ditatorial. Isso só mudará de enunciação em 1988.

E mudou porque era imprescindível dar espaço, no novo momento político que se instaurava, a um regime que não aceitasse a força bruta (leia-se: tanques e fuzis) como elemento de estabelecimento e validação do direito. Só um direito germinado democraticamente era legítimo. Daí os dizeres do artigo inicial da Constituição que brotava.

Um importante elemento de compreensão dessa mudança estruturante expressa em palavras tão especiais está situado 11 anos antes da promulgação da Constituição de 1988. É a “Carta aos Brasileiros”, lida no pátio da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, no começo da noite de 8 de agosto de 1977.

O protagonista desse episódio foi o professor Goffredo da Silva Telles Júnior (1915-2009), que nela se formou e ensinou. Tornou-se professor de Introdução à Ciência do Direito, em 1940, lecionando até 1985. Era admirado por seus alunos.

Em 1945, foi eleito membro da constituinte do ano seguinte. Apesar de haver pertencido ao movimento integralista, sua atuação parlamentar distinguiu-se da do grupo que simpatizava com o fascismo, sendo seus pronunciamentos contra a cassação dos parlamentares do partido comunista uma demonstração desse viés liberal. Deixou, em seguida, a política partidária, mas continuou próximo desse ambiente, ocupando, eventualmente, cargos públicos.

Logo após 1964, apresentou um fracassado projeto de constituição democrática ao governo fardado.  Porém, já em 1968, estava do lado de manifestações contra o regime militar. Foi assim, que, em 1977, na comemoração do sesquicentenário da Faculdade de Direito, um grupo de ex-alunos procurou o veterano mestre para confrontar a celebração oficial que contaria com a presença de Alfredo Buzaid, ex-ministro da Justiça do regime militar. Queriam que ele subscrevesse e lesse um manifesto exigindo a volta do Estado de Direito.

Ele assim o fez. Era insuspeito de “esquerdismo” ou “comunismo” e um notável em seu meio. O documento, inflamado de ânsia democrática, é um marco por chamar as coisas pelo seu nome em um tempo de censura. Uma de suas passagens mais marcantes diz: “Chamamos de ditadura o regime em que o governo está separado da sociedade civil. Ditadura é o regime em que a sociedade civil não elege seus governantes e não participa do governo. Ditadura é o regime em que o governo governa sem o povo. Ditadura é o regime em que o poder não vem do povo. Ditadura é o regime que castiga seus adversários e proíbe a contestação das razões em que ela procura se fundar.” E concluiu: “A consciência jurídica do Brasil quer uma cousa só: o Estado de Direito, já.”

A repressão não deu muita importância àquela manifestação. A imprensa, todavia, já no dia seguinte, ampliava o alcance das palavras que constavam do texto dos juristas que o assinavam. A sociedade sentiu que podia exigir democracia. Ecos dessa mensagem vieram na Lei de Anistia, pouco depois, e, anos mais tarde, na campanha das “Diretas-já!”, cujo slogan é uma clara paráfrase do fecho da “Carta aos Brasileiros”. A redemocratização tem uma página importante naquele fim de tarde paulistano.

Hoje, diante do receio de que o resultado das eleições possa ser desrespeitado, um novo manifesto está sendo preparado. A “Carta às Brasileiras e aos Brasileiros em defesa do Estado Democrático de Direito!” está por ser lida, no mesmo lugar, em 11 de agosto vindouro. As assinaturas foram franqueadas a toda a sociedade civil e já alcançam mais de 600 mil apoiamentos.

O texto dessa missiva não termina do mesmo jeito de 1977, como quem busca algo de volta, mas como quem exige que algo conquistado com sacrifício não se perca: “Estado Democrático de Direito Sempre!!!!”. Com quatro necessárias exclamações.