ARACAJU/SE, 24 de abril de 2024 , 13:00:46

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Separados e desiguais

Após a Guerra Civil (1861-65), que opôs escravagistas e abolicionistas, sobrevieram as 13ª, 14ª e 15ª Emendas à Constituição dos Estados Unidos. Elas garantiram a abolição da escravatura, o direito de cidadania aos afro-americanos e o de voto, em 1865, 68 e 70, respectivamente. Pouco depois, o Congresso dos EUA editou a Lei dos Direitos Civis, de 1875, que proibia tratamento discriminatório a partir de critérios raciais. A esse período, apropriadamente, foi dado o nome de Era da Reconstrução.

A reação dos supremacistas raciais brancos foi promover, no âmbito do direito estadual, normas segregacionistas. Tal conjunto normativo costuma ser designado de “Leis Jim Crown”, em referência a um personagem do comediante branco Thomas Rice, que se pintava de preto para fazer o seu humor racista. Uma delas era a Lei dos Carros Separados, da Louisiana, de 1890. Por ela, brancos e negros deveriam ter vagões distintos.

Um grupo de militantes resolveu protestar contra essa norma, que também não era aceita pela East Louisiana Railroad. Organizaram, então, uma experiência cívica que levou a um dos mais conhecidos julgamentos da história estadunidense. Em 7 de junho de 1892, o sapateiro Homer Adolph Plessy (1863–1925) comprou um bilhete na Press Street Depot, em Saint Louis, com destino a Covington. Embarcou na primeira classe de um trem, com partida às 4h15 da tarde. Ele tinha a pele branca, mas era juridicamente discriminado porque 1/8 de sua ascendência era negra. Pelas leis estaduais, era o suficiente para identificá-lo como “de cor”. Um detetive contratado pelos ativistas sabia disso e, combinado com Plessy e com a empresa, chamou um fiscal. Ao ser indagado por este se era negro, o passageiro respondeu que sim. Foi avisado que deveria ir ao vagão dos “de sua cor”. Não aceitou. Foi desembarcado e preso. Levado a julgamento, o juiz John Ferguson fixou-lhe a pena de 25 dólares. Plessy recorreu à Suprema Corte da Louisiana. Ali, embora tenha invocado seus direitos decorrentes da 13ª e 14ª Emendas, foi derrotado. Alçou, então, o debate à Suprema Corte dos Estados Unidos.

A tarefa não era fácil. A Suprema Corte havia decidido, em 1883, os chamados “Civil Rights Cases”, um conjunto de cinco processos que discutiam a constitucionalidade da Lei dos Direitos Civis. Neles, ela declarou que a legislação federal era inconstitucional porque não existia permissão para que o Congresso legislasse sobre negócios privados, tema reservado aos estados. A decisão, adotada por 8×1, seguindo o entendimento do juiz Joseph Bradley, abriu oportunidades para leis estaduais segregacionistas.

Em Washington, Plessy reiterou que a Lei dos Carros Separados era violadora das emendas da Reconstrução. Apesar disso, em 18 de maio de 1896, foi derrotado por 7×1. O juiz Henry Billings Brown, que conduziu a maioria, entendeu que, em relação à 13ª Emenda, a lei apenas implicava a distinção entre brancos e negros, baseada na cor. Por isso, não tenderia a destruir a igualdade ou restabelecer a servidão involuntária. Quanto à 14ª Emenda, disse não violada porque a natureza das coisas admite distinções. Portanto, separações, quando os ambientes permitiam ou requeriam, não implicariam em superioridade e inferioridade de uma e outra raças. Também considerou falaciosa a argumentação de inferioridade, dado que, se esta houvesse, seria porque os negros escolheram se colocar como tal. Ademais, se uma raça era inferior socialmente à outra, a Constituição não as poderia igualar no mesmo plano, pois isso escaparia ao direito.

Esses argumentos foram contrastados pelo juiz John Marshall Harlan I, que, embora sendo um ex-proprietário de escravos do Kentucky, criticou a maioria. Para ele, que também fora vencido no julgamento de 1883, do ponto de vista da Constituição e aos olhos da lei, não existem cidadãos superiores e inferiores. Ele acusou a maioria de ignorar que a única causa de existirem vagões separados seria a de que os brancos se reputavam melhores. Lembrou que o único modo de um negro entrar em um vagão de brancos seria se estivesse como enfermeira ou babá de um destes, o que demonstraria o caráter social do preconceito homologado. Ele vaticinou que o julgamento seria reputado tão infame quanto o do caso Dred Scott versus Sandford, de 1857, que afirmou que os negros não eram cidadãos, mas seres inferiores.

Harlan estava coberto de razão. Imediatamente após o julgamento, a legislação segregacionista passou a ser implementada nos estados e mesmo na União. O precedente teve um enorme efeito de estímulo legislativo e por seis décadas prevaleceu, vindo a ser reformado, apenas, quando do famoso julgamento do caso Brown versus Board of Education, de 1954, que começou a reversão da doutrina “separados, mas iguais”. Diz-se começou porque, depois dele vieram a Lei dos Direitos Civis, de 1964, e outros tantos diplomas e julgamentos equalizadores. Ainda assim, a se medir pelos recentes protestos, ainda há muito caminho a percorrer em busca da igualdade. Lá e aqui.