ARACAJU/SE, 25 de abril de 2024 , 9:34:40

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Um banho na consciência

Dia desses eu decidi fazer um prato diferente. Olhei pra geladeira (pra ver o que me inspiraria) e a bichinha estava repleta de produtos com os prazos de validade vencidos. Fiquei absorto (gosto dessa palavra) diante da geladeira aberta e da visão que me trucidava a consciência, esta medonha companheira, que começou uma nefasta DR (discussão de Relacionamento), daquelas que fazem todo homem começar a coçar a cabeça querendo sair, ir a um bar e tomar várias cervejas, só pra se livrar do falatório.

– Tá vendo aí, André, quanto dinheiro desperdiçado? Já viu a quantidade de gente passando fome no Brasil e no mundo? Como é que se desperdiça dinheiro desse jeito, rapá? Tome vergonha na sua cara embarbada!

Eu fiquei olhando prum lado e pro outro, querendo saber de onde surgiu aquela voz ácida e irritante. Parei um instante e voltei o olhar para a geladeira, enquanto um presunto de Parma me questionava com a ponta saindo da embalagem, como se me desse língua. Foi quando percebi que a comida queria se comunicar comigo.

– Que p… é essa, meu irmão! Pirei!?

Olhei mais atentamente, um queijo coalho, produzido em Glória, capital do ouro branco, chorava seu soro já azedo diante do flagelo de víveres naquele ambiente gelado. Véi, arregalei ainda mais meus grandes olhos e me compadeci da tristeza daquele pré-cozido gloriense.

Não bastasse essa empatia (eu já estava me desmanchando sentimentalmente, tal a manteiga em cima do balcão do armário da cozinha), vi tomates moribundos, já com sua vermelhidão da maturidade dando lugar a pelos brancos e lágrimas de chorume. E a tal da consciência:

– Olhe pra essas comidas, seu carniça (e é baiana, é?), sinta o desespero que sentem por suas vidas serem desperdiçadas, seus propósitos se transformarem em caldo de coisa apodrecendo. Não desvie o olhar, aguente o tranco! Quem mandou ser aéreo e não prestar atenção em tudo se dissolvendo?

Um abacaxi descascado, envolto em plástico-filme, soltava gargalhadas fúnebres diante do meu pranto que se instaurava e da iminente morte de todos dentro da geladeira.

– Cara, é sério que esse abacaxi desgraçado tá rindo da miséria alheia, mesmo ele estando junto no barco? É tragicomédia, só pode ser!

Não aguentando mais ver a dantesca cena, puxei um saco de lixo de 50L, comecei a saga de colocar os corpos para uma destinação fatal e final. Fechei os olhos para evitar sentimentalismos e fiz o que deveria ser feito. Em questão de minutos, o saco estava cheio, pronto para o descarte.

Ergui-me, orgulho ferido, mas com propósito de mudança, e disse em alta voz pra consciência e a geladeira ouvirem:

– Nunca mais outro enterro coletivo dessa natureza!

Então me despedi dos cadáveres, do dinheiro que os havia levado até a minha casa e fui limpar a geladeira. Aproveitei e limpei a consciência. A bichinha estava bem sujinha.

– E não fez comida, André?

– Pedi pelo aplicativo!