ARACAJU/SE, 25 de abril de 2024 , 4:51:40

logoajn1

Uma decisão infame

Em 2 de maio de 1927, a Suprema Corte dos Estados Unidos tomou uma das decisões mais sinistras de sua história. Ela autorizou que Carrie Buck fosse esterilizada, em conformidade com uma lei estadual da Virgínia, então vigente. Essa lei foi questionada sob os ângulos da igual proteção perante a lei (por que algumas pessoas seriam esterilizáveis e outras não?) e do devido processo legal substantivo (é razoável?). A defesa de Carrie dizia que a esterilização era uma violação de sua autonomia e integridade. Por outro lado, o diretor da instituição que cuidava de Carrie, John Hendren Bell, assinalava que o histórico familiar dela era indicativo de uma degeneração hereditária. Essa cadeia de transmissão de deficiências deveria ser interrompida.

Segundo a descrição do caso, feita pelo juiz Oliver Wendell Holmes Jr., Carrie Buck era uma jovem branca, “débil mental”, que estava sob os cuidados de uma colônia de epiléticos e doentes mentais. Ela era filha de uma mãe supostamente de mesma situação e tornou-se, também ela, genitora de outra criança que foi dita com as mesmas características. Quando ela tinha 18 anos, em 1924, o propósito de esterilizá-la foi levado a julgamento perante um juízo de primeira instância, que autorizou a medida, pois a operação dar-se-ia sem dor grave e sem perigo substancial de vida, traria benefício para a sociedade e para Carrie. A Suprema Corte da Virgínia manteve esse entendimento.

Alçado à Suprema Corte dos Estados Unidos, o posicionamento foi reafirmado. O juiz Holmes, que redigiu a posição vencedora, assinalou que a hereditariedade desempenha um importante papel na difusão de mazelas mentais, e que, sempre que se avaliar que a melhor opção é a esterilização, pode-se promovê-la, se hereditária a doença. No caso específico, o magistrado afirmou que houve respeito ao procedimento, o que garantiria a legitimidade da medida.

Até esse momento, Holmes estava fixado em uma reverência ao procedimento e à ideia de “poder de polícia”, a faculdade de o Estado de controlar situações de interesse público. Mas, após essas observações de cunho essencialmente técnico-jurídico, lançou um dos mais tristes argumentos da história da Suprema Corte. Disse ele: “Já vimos mais de uma vez que o bem-estar público pode apelar para as vidas dos melhores cidadãos. Seria estranho se não pudesse apelar aos que já drenam as forças do Estado para esses sacrifícios menores, muitas vezes não percebidos pelos interessados, para evitar que sejamos inundados pela incompetência. Será melhor para todo o mundo se, em vez de esperar para executar filhos degenerados pelo crime ou deixá-los morrer de fome por causa de sua imbecilidade, a sociedade puder impedir aqueles que são manifestamente inadequados de continuar com sua espécie. O princípio que sustenta a vacinação obrigatória é amplo o suficiente para cobrir o corte das trompas de Falópio.” E arrematou: “Três gerações de imbecis são suficientes”.   A decisão foi adotada por oito votos a um. Divergiu, apenas, o juiz Pierce Butler, que não deixou voto escrito. Suspeita-se que discordou por ser católico.

Há de se constatar o forte caráter eugenista da argumentação vencedora, despreocupada com a pessoa a ser esterilizada e focada em uma perspectiva supostamente protetiva da sociedade. À época em que os fatos se deram, a eugenia gozava de prestígio nos meios científicos estadunidentes. Decidir conforme essa visão era, portanto, estar em consonância com a mais atual “ciência”. Mas as decisões judiciais estadunidenses ignoraram algo relevante. Quem teria abusado da suposta incapacidade de discernimento de Carrie Buck e a engravidado? Por que tais fatos não foram referidos no julgamento? A pessoa dela foi havida como alvo da medida profilática, mas o estuprador sequer foi mencionado na decisão.

Não foi por acaso. Anos mais tarde, pesquisadores vasculharam os arquivos do caso e reconstruíram a trajetória dos fatos. Carrie Buck foi entrevistada e se constatou que ela não era “débil mental”. Ela foi estuprada por um sobrinho do casal que a adotara. Grávida, precisava ser despejada em algum lugar. Sua mãe, que já estava internada (sem deficiência, mas como tal diagnosticada, por “mau comportamento”), era uma boa justificativa. E, pelo fato de Carrie haver dado à luz uma criança “sem pai”, era o alvo perfeito da experiência dos eugenistas: uma narrativa que fosse levada aos tribunais e validasse a conduta. O advogado da colônia, os peritos, e mesmo o defensor nomeado para Carrie, agiram, em conluio, para que a situação fosse validada judicialmente. Venceram. Depois do julgamento, leis eugênicas foram disseminadas pelos EUA e além. Até caírem em desuso, nos anos 80, mais de 60 mil esterilizações foram feitas com essa base.

Essa legislação atravessou o Atlântico. Foi radicalizada. Depois da 2.ª Guerra Mundial, foi referida na defesa de criminosos nazistas, em Nuremberg. Uma ideia ruim, perversa, tem uma enorme capacidade expansiva e destrutiva.