213 páginas. Foi esse o número de laudas necessário para promover a maior virada de entendimento jurisprudencial do século XXI nos Estados Unidos. Ela ocorreu no caso “Dobbs versus Jackson Women’s Health Organization”, oficialmente divulgado pela Suprema Corte na última sexta-feira, 24 de junho.
No começo de maio, a grande mudança já era avistada. O posicionamento de Samuel Alito, um dos juízes desse tribunal, vazara. No documento, indicava-se que o direito à interrupção da gravidez, garantido por uma decisão de 1973 (“Roe versus Wade”) e outras que lhe matizaram, seria reconfigurado.
Diferentemente do que muito se leu no noticiário brasileiro, o aborto, agora, não está proibido nos Estados Unidos, ele apenas não está mais balizado por uma decisão da Suprema Corte. Doravante, cada estado daquele país definirá a extensão das possibilidades de interrupção da gestação. Em alguns, haverá ampliação do direito. Noutros, restrições ainda maiores. Se a ideia de federação foi prestigiada, a de igualdade entre cidadãos, por outro lado, sofreu um baque.
Obviamente, esse julgamento provocou uma explosão de descontentamento nos grupos que defendem o direito de a mulher decidir sobre a continuidade ou não da gestação (“pró-escolha”). A ideia de “meu corpo, minhas regras” foi atropelada pela deliberação. No âmbito político estadunidense, essa posição é pauta tradicionalmente pertencente ao Partido Democrata.
Lado outro, há os que enxergam o feto como uma vida e, por isso, nivelam a interrupção voluntária da gravidez a um crime como o homicídio. São os “pró-vida”, que, na estrutura política dos Estados Unidos, estão concentrados no Partido Republicano.
E foram seis juízes nomeados por presidentes republicanos que tomaram a decisão do caso Dobbs, validando uma lei do estado do Mississipi, de 2018: Samuel Alito (que redigiu a deliberação), John Roberts (o presidente), Clarence Thomas, Brett Kavanaugh, Neil Gorsuch e Amy Coney Barret. Vencidos ficaram os três magistrados nomeados em governos democratas: Elena Kagan, Stephen Breyer e Sonia Sotomayor. Quanto à declaração de que o precedente de “Roe versus Wade” não mais prevaleceria, ficou derrotado o juiz Roberts, que preferia que, caso a caso, se fizesse a mudança de entendimento, sem uma revogação geral da jurisprudência consolidada.
De acordo com a norma do Mississipi discutida nesse recente julgamento, após 15 semanas de gravidez, a interrupção voluntária não é mais permitida, exceto em casos de risco de vida para a gestante e de grave anormalidade fetal (mas não em casos de estupro e incesto, por exemplo). Um dia após o início da vigência da lei, uma clínica (a Jackson Women’s Health Organization), naquele estado, moveu uma ação requerendo que prevalecesse o precedente anterior, que permitia o aborto antes da viabilidade fetal. Thomas Dobbs, o servidor público responsável por essa matéria no sistema de saúde estadual, foi posto na condição de réu.
A primeira instância deu razão à clínica, reconhecendo que não haveria interesse estatal forte o suficiente para impedir o aborto nos termos da jurisprudência então vigorante, que vedava as proibições de interrupção de gravidez antes da viabilidade extrauterina do feto. Houve recurso e a Corte Federal do 5º Circuito manteve a decisão inicial. O processo chegou, então, à Suprema Corte, onde teve o desfecho mencionado.
Analistas políticos anteveem a possibilidade de uma reação (“backlash”) legislativa contra a decisão do caso Dobbs. A conferir. O certo é que o tema está longe de encontrar um fim. Há um desacordo moral profundo acerca de qual perspectiva deve prevalecer, qual deve ser o dimensionamento de eventuais permissões ao aborto e a medida das punições, se cabíveis. Com o desenho dado pela Suprema Corte à solução, reconhecendo que se trata de matéria de direito estadual, mulheres de alguns estados estarão em situação de discriminação de direitos em relação a outras que residam em estados de legislação mais permissiva. A divisão do país tende a ser ainda mais radicalizada.
A decisão não põe uma pedra sobre o assunto. Nesse tipo de discussão, cada êxito de uma parte provoca a resistência da outra. Durante quase 50 anos foram os republicanos os que lutaram por reverter o entendimento dominante. Agora, os democratas estão nesse papel. As eleições que ocorrerão neste ano, em diversos estados, serão palanques para esses debates. O Judiciário de cada unidade será testado nas diversas variações redacionais de proibições e permissões. Já que o sistema de precedentes foi fragilizado com a virada, é de se presumir que as instâncias inferiores também se sintam estimuladas ao confronto.
Enquanto isso, a realidade seguirá o seu curso, mostrando que não existem soluções fáceis para problemas complexos. Os protestos bilaterais prosseguirão. Muitas gestantes abortarão, mesmo em locais proibidos. Muitas morrerão em decorrência disso. Para essas, nem haverá escolha, nem vida. Para si ou para o feto. Triste.