Certos elementos na figura da autora americana Sylvia Plath – uma separação tumultuada, suicídio aos 30 anos, um volume póstumo de poderosa poesia intercalada com elementos autobiográficos – formaram a tempestade perfeita para o interesse aparentemente inesgotável pela vida da poetisa. Disso resultou uma verdadeira Indústria de biografias e explorações biográficas, movimento que nem sempre valoriza a obra do autor em si. Um sintoma disso é que partes consideráveis da produção poética de Plath ficaram inéditas no Brasil até este ano, lacuna agora sanada com “Poesia reunida”, volume bilíngue traduzido e organizado pela poetisa Marília Garcia.
O volume inclui dois livros: “O colosso”, publicado em vida por Plath, traduzido pela primeira vez no Brasil, e “Ariel”, a obra poética mais conhecida. Apresenta ainda uma secção com 42 poemas esparsos, que incluem obras como “Lesbos” e “Sou vertical”. É a publicação brasileira mais incentivada da poesia de Plath, que também escreveu prosa, incluindo contos e o romance “Redoma de Vidro” (Biblioteca Azul, 2014), romance de formação publicado em 1963 que encontrou seu lugar no cânone americano.
No caso de “Ariel”, o leitor brasileiro também tem acesso à edição “restaurada”, publicada pela Verus em 2007, com tradução de Rodrigo Garcia Lopes e Cristina Macedo. Esta é a versão do livro exatamente como a poetisa deixou antes de morrer – a primeira edição, de 1965, foi editada por seu viúvo, também poeta Ted Hughes, com a supressão de alguns poemas e a inclusão de outros. “Collected Poetry” segue esta edição editada por Hughes, mas traz os poemas que foram excluídos na seção “Scattered Poems”, além da ordem do livro original, para que o leitor tenha as duas versões.
O volume de capa dura apresenta material de apoio eficiente, mas enxuto: uma cronologia detalhada no final e uma pequena “nota para esta edição” do editor e tradutor, detalhando escolhas e livros e poemas selecionados. O leitor em busca do elemento autobiográfico que tanto permeia as edições e leituras da obra de Plath não encontrará no livro um banquete – quem preferir se aprofundar nesse caminho faria bem em começar por “A Mulher Calada” (Companhia das Letras) , em que Janet Malcolm desvenda tão bem as diferentes biografias e disputas que cercam o poeta.
Em “Poesia Reunida”, o prato principal é a voz de Plath, a força de seus poemas perturbadores e comoventes, em uma tradução que consegue reproduzir sua contundência característica, numa delicada combinação de dor, sarcasmo, ternura, desespero. Marília Garcia escreve na nota introdutória: “(…) indicam também uma forma de ler na contramão do que costuma acontecer: em vez de ler a vida (ou apenas a vida), conter o ímpeto e partir para os poemas. E aqui estão, prontos para serem lidos: vivos, inteiros, eletrizantes”.
As traduções preocupam-se particularmente em transpor os ritmos de Plath, suas cadências – que, como definiu a poetisa Anne Stevenson, autora da polêmica biografia “Bitter Fame” (Rocco, 1992), “fazem exatamente os ruídos e explosões de som que levam uma visão”. Assim, “Papai” ressoa em português (“Paizinho”) como seu original com um ritmo estranho de uma rima infantil marcada por sons de “u”: “Eu não aguento mais você, eu não aguento mais você mais/ Sapato espúrio,/ Em que vivi como um pé em apuros/ Pálido e pobre, por trinta anos/ Até respirar era difícil”. O leitor, colocado na posição de “turma comedora de amendoim”, não pode ignorar o “strip tease mesmo” (“Lady Lazarus”). A voz de Plath ressoa com frescor, “mais terrível do que nunca, cicatriz/vermelho no ar, cometa vermelho” (“Stinger”).
poesia coletada
Silvia Plath. Org. e trad.: Marília Garcia. Companhia de Letras. 512 páginas, R$ 139,90
Marina Della Valle é jornalista e tradutora, doutora em estudos linguísticos e literários pela USP
Originalmente publicado em https://valor.globo.com/eu-e/noticia/2023/07/01/poesia-perturbadora-de-sylvia-plath-ganha-traducao-com-dor-sarcasmo-e-ternura.ghtml