ARACAJU/SE, 11 de julho de 2025 , 23:20:55

Como órgãos de porcos podem diminuir a fila de transplantes em humanos

 

O americano Tim Andrews, de 66 anos, passou mais de dois anos ligado a uma máquina de hemodiálise. Em 2023, sofreu um infarto e foi informado que, por ter sangue tipo O, sua espera por um rim compatível poderia levar de cinco a dez anos. Em janeiro deste ano, porém, a espera acabou. Andrews se tornou a quarta pessoa no mundo a receber um rim de porco geneticamente modificado — e o único paciente vivo com um órgão do tipo funcionando.

A cirurgia experimental aconteceu no Massachusetts General Hospital, nos Estados Unidos, com uma equipe liderada pelo cirurgião brasileiro Leonardo Riella. O rim, que tinha 69 edições genéticas para torná-lo mais parecido com um órgão humano, funcionou de imediato. “Foi como se a nuvem da diálise tivesse se dissipado”, disse Andrews após o procedimento. “Quero que essa cirurgia seja uma mensagem de esperança para quem ainda está na fila.” Andrews agora vive com o novo rim, sem necessidade de diálise, e se tornou o símbolo mais recente de uma promessa que, até pouco tempo, soava como ficção científica: transplantar órgãos de animais em humanos.

No Brasil – país com o maior sistema público de transplantes do mundo – quase 42 mil pessoas aguardam por um órgão. Todos os dias, ao menos dez morrem antes de recebê-lo, segundo estimativa da Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO). “Como existe uma escassez de órgãos, o xenotransplante poderia ser uma alternativa à diálise, que traz uma série de consequências de saúde a longo prazo”, explica Riella, que realiza pesquisas na área há mais de 20 anos, à GALILEU.

O rim não é o único órgão envolvido nessa nova fronteira da medicina. Corações de porco geneticamente modificados já foram transplantados experimentalmente em humanos. O primeiro caso, feito nos Estados Unidos em 2022, prolongou a vida de um paciente terminal por cerca de dois meses. Também há registros de transplantes de fígado de porco, embora em contexto de suporte temporário, até que se encontre um novo órgão, e não como solução definitiva. Em paralelo, rins e corações têm sido testados extensivamente em primatas, com alguns animais sobrevivendo por mais de um ano após o procedimento.

Em fevereiro de 2025, a Food and Drug Administration (FDA), agência reguladora de alimentos e medicamentos dos Estados Unidos, aprovou o primeiro teste clínico formal com rins de porco geneticamente modificados em humanos – um divisor de águas para a área. O estudo será feito por duas empresas de biotecnologia, inicialmente em seis pacientes em diálise que serão monitorados por médicos durante 24 semanas. É primeira vez, pacientes não-terminais passarão tanto tempo sob observação, o que é uma forma mais precisa avaliar a segurança e a eficácia do transplante em condições menos extremas.

A mudança indica que os xenotransplantes podem estar deixando de ser uma solução de último recurso para se tornarem uma realidade, capaz de desafogar as filas de transplante no mundo. No entanto, o avanço científico traz também preocupações éticas. Afinal, transplantes entre animais e humanos envolvem etapas como reconfigurar outras espécies e ampliar os limites do corpo humano.

Maior progresso da cirurgia

O primeiro transplante de órgão bem-sucedido da história moderna aconteceu em 1954, nos Estados Unidos, entre dois irmãos gêmeos idênticos. A cirurgia – um transplante de rim – foi feita por Joseph Murray, que mais tarde ganharia o Prêmio Nobel por abrir caminho para uma das maiores transformações da medicina no século 20. Até então considerada impossível, a troca de partes vitais entre seres humanos passou a ser, em alguns casos, a única chance de sobrevivência.

Com o avanço dos imunossupressores e o aprimoramento das técnicas cirúrgicas, transplantes de fígado, coração e pulmão também se tornaram rotina em centros especializados. “O transplante de órgãos constitui o maior progresso da cirurgia. Nos últimos 25 anos, foram salvas duas milhões de vidas com transplantes. Agora, por que não se fazem mais transplantes? Porque faltam órgãos”, diz o cirurgião Silvano Raia, primeiro médico a realizar um transplante de fígado entre pessoas vivas no mundo e coordenador do XenoBR, projeto sediado na Universidade de São Paulo (USP) com foco em criar uma linhagem nacional de porcos geneticamente modificados para uso em transplantes.

Por mais eficiente que seja a logística, por mais bem treinadas que estejam as equipes, transplantes dependem de uma equação delicada: um doador compatível, que chega em tempo hábil, com autorização familiar do morto, dentro de um hospital preparado. No Brasil, o sistema é público, gratuito e amplo – mas opera sob pressão constante. Embora o país seja o segundo no mundo em número absoluto de transplantes, a espera pode se estender por anos em casos mais graves ou com tipos sanguíneos menos comuns.

Foi com essa tecnologia que cientistas passaram a remover do genoma suíno os elementos que provocavam as reações mais agressivas no corpo humano. O principal alvo era o gene GGTA1: ele produz uma molécula de açúcar chamada alfa-gal, que desencadeia uma resposta imune fulminante nos receptores. Também foram eliminados retrovírus endógenos presentes no DNA dos porcos, como o PCMV, que poderiam reativar doenças ao serem transferidos para humanos. Em alguns casos, genes humanos são inseridos nos embriões suínos para aumentar a compatibilidade com nossos tecidos.

Mas por que o porco? A escolha não é obra do acaso. “Se você imaginar um suíno de uns 60 quilos, desprovido das patas e da cabeça, ele tem um abdômen muito parecido com o nosso”, explica Raia. Além de terem órgãos com tamanho e funcionamento semelhantes aos de um humano adulto, são onívoros, têm reprodução rápida, baixo custo de manejo e ampla aceitação para uso biomédico. Tecnicamente, o porco já é usado como fonte para válvulas cardíacas e insulina, além de pele para enxertos. A lógica dos xenotransplantes é levá-lo a um novo patamar: não apenas fornecedor de partes, mas de órgãos inteiros, editados sob medida.

Órgão pronto em 10 meses

O processo de criar um porco doador de órgãos começa longe do hospital. Tudo parte de um animal ainda sem qualquer edição genética, mantido em uma granja. A fecundação acontece ali, mas o parto não. Para garantir que os filhotes cresçam sem contato com causadores de doenças, a porca prenha – considerada ainda “selvagem”, no jargão técnico – é levada a um centro cirúrgico dentro da chamada pig facility, um biotério totalmente livre de micróbios, construído especialmente para esse fim.

Ali, a porca passa por uma cirurgia e tem o útero removido com todos os fetos ainda dentro. Como os leitões estão protegidos no ambiente uterino, eles não foram expostos ao mundo externo – e é exatamente assim que permanecem ao serem retirados: estéreis. A partir desse momento, todo o ambiente que os cerca é mantido em altíssimo padrão de higiene.

A tak pig facility funciona como uma espécie de bolha sanitária. O ar é trocado 30 vezes por hora, passa por filtros capazes de reter 99,9% das partículas e não há contato com o exterior sem múltiplas barreiras de descontaminação. A ração é irradiada, a água é esterilizada, e os técnicos que trabalham ali não podem ter contato com outros animais fora do ambiente de pesquisa. Para entrar, é preciso tomar banho, vestir trajes de proteção total e passar por controle sanitário. Para sair, repete-se o mesmo processo.

Esse rigor tem um motivo: ao contrário dos transplantes entre humanos, que envolvem riscos infecciosos assumidos – ainda que controlados –, o xenotransplante exige uma margem de segurança muito mais alta. Quando um órgão de porco é implantado em um ser humano, qualquer vírus presente no doador pode representar uma ameaça imprevisível. Por isso, a lógica da “fábrica de porcos” para transplantes é não apenas gerar animais compatíveis, mas absolutamente livres de causadores de doenças.

Depois do nascimento desses leitões estéreis, começa a segunda etapa do processo. Os pesquisadores passam a utilizar embriões com material genético editado. Esses embriões são introduzidos nas porcas do biotério por inseminação artificial. É a partir desses novos nascimentos que surgirão os animais efetivamente destinados à doação de órgãos. Cada um deles carrega modificações específicas, que os tornam mais compatíveis com o organismo humano, como a remoção de genes que provocam rejeição e a inserção de genes humanos capazes de suavizar a resposta imune do receptor (e evitar uma eventual rejeição).

Os primeiros leitões da pig facility do XenoBR, na USP, nasceram em março de 2025. Eles ainda não passaram por modificação genética – o nascimento serviu como teste para validar o protocolo de assepsia e o funcionamento da infraestrutura. A partir desse processo, o objetivo é dar início à linhagem de porcos editados geneticamente que, no futuro, poderão fornecer órgãos para transplantes em humanos. Segundo o enfermeiro Tadeu Thomé, CEO do XenoBR, a perspectiva é de que até o fim deste ano nasçam os primeiros leitões geneticamente modificados.

A criação de um porco doador leva, em média, dez meses, da gestação até o momento em que o animal atinge entre 70 e 80 kg, peso ideal para garantir a compatibilidade anatômica com o corpo humano. Levando isso em conta, a estrutura do biotério de porcos da USP permitiria a criação de até 40 animais por ano. Como cada animal possui dois rins, essa capacidade inicial já abriria margem para até 80 transplantes de rins.

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