Após a controvérsia em torno do Pix, o brasileiro ficou mais atento ao acesso às informações sobre sua vida financeira. No entanto, ainda que leis e normas possam evitar a violação de liberdades da população, a digitalização do dinheiro e das transações – e, portanto, o maior acesso a dados – é um caminho sem volta, segundo especialistas. Do Pix ao Drex, as mesmas tecnologias que agilizam e barateiam o envio de dinheiro para lá e para cá também facilitam o trabalho dos órgãos de fiscalização.
“O dinheiro no Brasil já é digital. O Pix, inclusive, demonstrou aí o grande volume de pessoas que fazem suas transações. Num país onde a violência é tão extrema, andar com dinheiro físico é basicamente pedir para ser roubado”, afirma Carlos Pinto, diretor do Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação (IBPT).
Para além das transferências via Pix, o país deve experimentar nos próximos anos outras novidades – em desenvolvimento pelo Banco Central (BC) e a Receita Federal – que facilitarão a vigilância por parte das autoridades, ampliando a preocupação com o eventual cerceamento da liberdade financeira dos cidadãos.
Uma delas é a moeda digital brasileira – o Drex, em desenvolvimento pelo BC. Há também o split payment, a cargo da Receita Federal. Nesse sistema, que deve entrar em vigor em janeiro de 2026, o valor referente aos impostos será imediatamente repassado aos governos no momento do pagamento de um produto ou serviço. Hoje, esse dinheiro primeiro entra para o caixa da empresa e só depois é repassado ao governo.
Depois do Pix, BC desenvolve Drex – e ele também deve facilitar acesso a dados
“Certamente, os avanços tecnológicos vão cada vez ampliar o monitoramento das transações financeiras. Isso vai facilitar o governo a acessar dados das movimentações e identificar práticas ilícitas. A regulamentação do Drex já é um cenário onde o governo vai ter acesso direto às movimentações realizadas com essa nova moeda”, avalia Lohaine Batista, sócia na consultoria Souzamaas.
O próprio mercado já reconhece essa possibilidade. O diretor de produtos e vendas corporativas no Itaú Unibanco, Eric Altafim, comentou no ano passado sobre a programabilidade do Drex – que poderia, por exemplo, limitar as compras feitas por beneficiários do programa Bolsa Família a itens de alimentação. O Itaú é um dos parceiros do Banco Central no desenvolvimento e testes do Drex.
Altafim diz que, se estivesse vigente na época da pandemia, a moeda digital brasileira poderia ser programada para que as pessoas só pudessem fazer compras dentro de uma determinada distância, como uma forma de garantir o isolamento social. As declarações foram feitas em agosto de 2024, durante seminário do Itaú Unibanco sobre os 30 anos do real.
O presidente do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), Alessandro Stefanutto, disse recentemente que o órgão estuda proibir o uso de recursos do Benefício de Prestação Continuada (BPC) para fazer apostas esportivas – as bets.
Stefanutto afirmou ao jornal O Estado de S. Paulo que pediria informações ao BC sobre o uso específico dos recursos para essa finalidade. De acordo com O Globo, nos bastidores do BC, a avaliação é de que seria complexo fazer o cruzamento em razão das regras do sigilo bancário.
No ano passado, no entanto, a autoridade monetária apresentou um levantamento, feito a pedido do senador Omar Aziz (PSD-AM), apontando um volume de R$ 3 bilhões em apostas esportivas feitas em apenas um mês por beneficiários do Bolsa Família.
De acordo com Victor Valente, advogado e presidente da Comissão de Blockchain e Criptoativos da OAB de Niterói (RJ), caso o Drex estivesse já implementado, essa sondagem sobre o uso do BPC seria bem mais simples.
“Se o Drex estivesse implementado seria mais fácil, porque todos os serviços já estariam interconectados, né? Então, pode ter consórcios e troca de informações”, diz, referindo-se a possíveis intercâmbios entre o governo e a autoridade monetária.
Valente afirma que, por ser criado com a tecnologia de blockchain, o Drex fornece acesso a todas as movimentações, em ordem cronológica, em nome de quem, “do jeito que foram feitas”. E se a troca de informações entre órgãos for permitida, a fiscalização fica mais fácil.
Em sua página dedicada ao Drex, o Banco Central afirma que a moeda digital seguirá todas as regras do sigilo bancário. Segundo a autarquia, o Drex será usado em conjunto com o real “tradicional” para facilitar negociações de grande porte, por meio de “contratos inteligentes”. Na compra de um carro, por exemplo, o dinheiro só cairá na conta do vendedor no momento em que os papéis forem transferidos para o comprador.
A ideia é que o Drex não seja utilizado para pequenas transações, como compras em farmácias, mercados, no varejo em geral. O BC também tem informado que o Drex terá o mesmo valor e a mesma aceitação do real físico, além das garantias que o sistema monetário atualmente concede aos cidadãos.
Isso significa que quebras de sigilo bancário ou bloqueio de contas só poderiam ser feitas por determinações do Judiciário. Até o momento, não há data para implementação do Drex.
Não é só Pix e Drex: Receita tem um “T-Rex” para fiscalizar o contribuinte
Carlos Pinto, do IBPT, acredita que o fato de o dinheiro estar na forma de criptomoeda ou alocado em estruturas de blockchain não vai necessariamente “aumentar ou piorar o controle por parte da Receita”.
Ele afirma que, nesse campo, o Brasil tem ferramentas tecnológicas superiores às de muitos países desenvolvidos. Um exemplo é o T-Rex, um supercomputador para análise e cruzamento de dados fiscais em larga escala usado pela Receita para analisar declarações de contribuintes.
“A população precisa compreender que a Receita tem mecanismos suficientemente vorazes para entender as transações que são realizadas pelo contribuinte”, diz o diretor.
Segundo ele, o próprio BC já informa para a Receita Federal transações como as de cartão de crédito e gastos com seguro. “Então, a Receita Federal detém em sua estrutura dados suficientes para fazer o cruzamento e entender quem está sonegando e quem não está”.
Facilitar cobrança de impostos e fiscalização é tendência
Uma novidade acelerada pela reforma tributária é o split payment, desenvolvido em parceria pela Receita Federal e outros órgãos. Por meio desse sistema, no momento em que o produto ou serviço for pago pelo consumidor, serão separados o valor que cabe ao vendedor e o valor do imposto – e este será imediatamente encaminhado, nas devidas proporções, aos governos federal, estadual e municipal.
Desse modo, o split mudará a lógica da cobrança de impostos no Brasil, que será antecipada para o momento da compra. Atualmente, o recolhimento do tributo é feito após a venda, o que não deixa de criar dificuldades para a fiscalização.
Especialistas avaliam que a medida pode trazer impactos para o fluxo de caixa das empresas, já que o valor será destinado imediatamente para o Fisco. Também questionam como será realizada a contabilização dos créditos que geram descontos nos tributos.
Lohaine Batista avalia que a simplificação, com cobrança direta dos impostos, já ocorre em outros países, com o objetivo de evitar fraudes e atrasos no pagamento dos impostos. No entanto, no Brasil, a implementação do split payment pode trazer desafios, “principalmente para trabalhadores informais, pequenas e médias empresas, podendo aumentar o custo para se adequar às exigências tecnológicas”.
Regulamentação é desafio diante da ampliação do acesso a dados financeiros
Diante dos avanços que permitem maior acesso aos dados financeiros da população, Lohaine afirma que a privacidade depende da adoção de mecanismos robustos de proteção de dados e de transparência sobre como as informações serão usadas, de forma a evitar abusos na fiscalização e no uso dessas informações.
Em relação ao Drex, a deputada Júlia Zanatta (PL-SC) tem buscado apoio na Câmara tanto para barrar a substituição total do papel-moeda pela moeda digital, quanto para regular o Drex. Para ela, o avanço das moedas digitais em todo o mundo levanta preocupação sobre o controle quase absoluto que elas podem assegurar ao Estado ou a estruturas supranacionais.
Alternativas como as criptomoedas, que oferecem um grau de anonimato interessante para quem busca privacidade, podem ser consideradas para quem deseja manter sua privacidade financeira sem depender do governo ou das normas editadas pelo Legislativo.
Mas ainda há limites para o uso de criptomoedas no dia a dia. Por isso, Lohaine afirma que é necessário considerar os desafios regulatórios e a aceitação dessas moedas no mercado.
“Temos como opção a moeda física. Porém, vemos com o passar dos anos que o uso do dinheiro físico está diminuindo conforme a digitalização avança, aumentando ainda mais o desafio de mantermos nossa vida financeira no anonimato”, conclui.
Fonte: Gazeta do Povo