Fileiras de torres residenciais, de cerca de 26 andares, erguem-se inacabadas na cidade de Lu’an, na Província de Anhui, cerca de 560 km a oeste de Xangai, com suas proteções de plástico encerado batendo ao vento.
Em outras áreas da cidade, estátuas douradas de Pégasos guardam um parque temático inacabado, de US$ 9 bilhões, planejado para ser maior que a Disneylândia. O projeto de uma unidade de produção de veículos elétricos, de US$ 4 bilhões, decisiva para os sonhos econômicos dos dirigentes locais, continua se limitando a uma estrutura de aço com vegetação abandonada invadindo a rua.
As estruturas são monumentos às ambições outrora grandiosas do grupo chinês Evergrande, que está atualmente entre as empresas imobiliárias mais endividadas do mundo, e um estudo de caso sobre como a dependência chinesa do setor imobiliário como motor da economia contribuiu para alimentar essas ambições.
A Evergrande enfrenta problemas, em parte, porque incorporou imóveis agressivamente em lugares como Lu’an, onde sua estratégia agressiva de construção sustentada por dívidas foi solapada pelo declínio da população local. A empresa lançou centenas de projetos em mais de 200 cidades chinesas.
Ao longo de sua expansão, a Evergrande acumulou mais de US$ 300 bilhões em dívidas. Em setembro, disse estar enfrentando dificuldades sem precedentes e que tentava proteger os clientes. Dias depois, deixou de honrar um pagamento de juros agendado a detentores externos de bônus.
Há uma semana, a Evergrande e sua divisão de gestão de imóveis suspenderam as transações das ações na bolsa de Hong Kong; a divisão disse que poderia estar sujeita a uma oferta de tomada de controle, que poderia proporcionar o ingresso do dinheiro tão necessário para a Evergrande.
Os problemas da empresa estão entre os efeitos que vêm se desdobrando desde que o governo chinês, preocupado com os riscos ao sistema financeiro, começou no ano passado a obrigar as incorporadoras e começar a sanear seus balanços. Os investidores mundiais temem que as medidas restritivas possam desencadear turbulência no mercado financeiro ou uma prolongada retração do setor imobiliário. Pessoas que compraram unidades em torres inacabadas se perguntam para onde foi seu dinheiro.
“Gastamos toda a poupança da nossa família nesse apartamento”, disse uma agricultora de 59 anos de sobrenome Jiang, que, a exemplo de outros compradores em Lu’an, não quis fornecer seu primeiro nome por preocupação com a possibilidade de contrariar a empresa.
Em agosto, disse, ela comprou uma unidade por 890 mil yuans (US$ 138 mil) em um projeto da Evergrande chamado Junting, ou “Palácio de Jade”, com 47 prédios de apartamentos. As obras foram suspensas meses atrás, dizem moradores da cidade. Jiang disse não saber quando – ou se – serão retomadas. “A gente não sabe mesmo o que fazer”, disse ela.
A Evergrande concluiu muitos projetos e entregou residências aos compradores em Lu’an nos últimos dez anos. Um porta-voz da Evergrande disse que a empresa fará todo o possível para garantir a conclusão de seus projetos “em todas as cidades ou regiões”. Autoridades de Lu’an não deram retorno a pedidos de entrevista para a reportagem.
O fator decisivo para a expansão da Evergrande foi uma economia fundamentada no setor imobiliário em toda a China, na qual todas as partes, de incorporadoras a financistas, passando por dirigentes municipais, receberam um estímulo para perpetuar o forte ciclo de crescimento. A Evergrande encontrou um mercado para seus projetos em meio a uma série de compradores – entre os quais funcionários de empresas e agricultores que tentavam migrar para áreas urbanas -, que acreditavam que os valores dos imóveis aumentariam, independentemente das circunstâncias, e supunham que o governo chinês os protegeria contra um declínio nos preços.
Para os políticos locais e regionais, as incorporadoras representaram uma fonte de receita. Com poder limitado para cobrar impostos, as cidades chinesas obtêm aproximadamente um terço de sua arrecadação com a venda de terrenos a incorporadoras imobiliárias como a Evergrande. As cidades anexam área rural para vender para as incorporadoras; os agricultores muitas vezes são autorizados a comprar apartamentos a um preço menor.
Os imóveis se tornaram os maiores propulsores da economia de algumas cidades e sua principal fonte de receita. A receita de Lu’an gerada pelas vendas de terrenos totalizou US$ 1,2 bilhão no primeiro semestre deste ano, comparativamente a US$ 900 milhões em arrecadação total de impostos.
Mas, nos últimos cinco anos, a construção de imóveis em cidades de menor porte na China ficou muito à frente da demanda gerada por seus potenciais ocupantes, o que deixou o mercado cada vez mais dependente da compra de imóveis por especuladores e investidores, disse Logan Wright, diretor de pesquisa de mercado da empresa de pesquisa Rhodium Group, de Nova York. Cerca de 21% das residências de áreas urbanas na China já estavam ociosas em 2017, o que equivalia a 65 milhões de unidades desocupadas, de acordo com dados da Pesquisa Financeira das Famílias Chinesas.
Com as medidas restritivas do governo chinês sobre as incorporadoras, a construção de novas unidades residenciais desacelerou e os preços dos imóveis habitacionais estão em queda em muitos lugares. A receita gerada pelas vendas de terrenos para os governos provinciais e municipais caíram 17,5% em agosto em comparação com o mesmo mês do ano passado, segundo o Rhodium Group.
Uma desaceleração acentuada do mercado imobiliário chinês poderá “exacerbar e amplificar a pressão de retração” do mercado de trabalho e da economia chinesa como um todo, alertaram economistas do Goldman Sachs em nota recente. De acordo com algumas estimativas, a atividade imobiliária responde atualmente por quase 33% da economia da China.
A maioria dos economistas e investidores acredita que Pequim vai reestruturar a Evergrande. No fim do mês passado, o Banco do Povo da China (PBoC, o banco central chinês) disse que vai “manter o desenvolvimento saudável do mercado imobiliário e salvaguardar os direitos e interesses legítimos dos compradores de moradias.”
Mesmo assim, economistas afirmam que haverá perda de atividade econômica se Pequim continuar drenando o excesso de dívida e erradicando a especulação no mercado imobiliário.
Alguns projetos da Evergrande parecem ter se saído melhor em cidades maiores. Segundo alguns meios de comunicação chineses, embora a companhia tenha suspenso as obras de alguns empreendimentos em Guangzhou, no sul da China, as obras de construção de outros projetos elas foram retomadas no fim de setembro.
Lu’an perdeu 5% de sua população nos últimos dez anos. Entre os quatro milhões de moradores da cidade, muitos têm mais de 60 anos e a renda anual média disponível de US$ 3.500, está abaixo da média nacional de US$ 5.000, segundo dados do governo.
Mesmo assim, de 2011 a 2020 a Evergrande investiu mais de US$ 10 bilhões e lançou vários grandes projetos em Lu’an, incluindo complexos residenciais, a fábrica de veículos elétricos e o parque temático “Fairyland” com blocos ao estilo europeu em tons pastéis e uma mistura de animais como personagens, que incluem uma criatura parecida com uma rena e um dragão azul.
Quatro projetos inacabados da Evergrande em Lu’an, visitados pelo “The Wall Street” no fim de setembro, parecem estar com as obras interrompidas. Ali perto, donos de lojas relataram a perda de negócios depois que os trabalhadores da construção pararam de aparecer. Em um escritório da Evergrande, funcionários tiravam uma soneca ou se debruçavam sobre smartphones.
Pelo menos 23 processos envolvendo títulos de dívida de curto prazo – uma espécie de nota promissória entre as empresas chinesas – foram movidos neste ano contra subsidiárias da Evergrande na província de Anhui, onde fica Lu’an, segundo uma busca feita pelo “WSJ” no Tianyancha, um banco de dados corporativos chinês. Os demandantes incluíam fabricantes de tintas, cabos, cimento e elevadores, além de empresas de construção. O “WSJ” não encontrou nenhum desses processos no ano anterior no banco de dados.
Como as empresas ‘dragon head’. A Evergrande foi fundada em 1996, em Guangzhou, por Xu Jiayin, que, segundo a mídia chinesa, cresceu em uma vila pobre e é filho de um lenhador. Ele ficou conhecido como Hui Ka Yan, seu nome em cantonês.
Hui expandiu a Evergrande até torná-la uma potência nacional com mais de 150 mil funcionários, que registrava vendas recordes ano após ano, conforme os preços das residências disparavam. O preço das ações de Evergrande mais do que quintuplicou em 2017, ano em que Hui chegou a ser o homem mais rico da China por um período, de acordo com a empresa de pesquisas Hurun Report.
A incorporadora levantou recursos em parte com a venda antecipada de unidades residenciais. Os compradores pagavam adiantado e então esperavam até os edifícios serem construídos. Segundo estimativa da empresa de consultoria Capital Economics, entre seus credores estão os compradores de 1,4 milhão de apartamentos que a Evergrande vendeu antecipadamente, mas ainda não concluiu as obras. A incorporadora também tomou créditos de bancos e investidores estrangeiros.
A Evergrande expandiu seus negócios para além do mercado imobiliário: entrou na área de produção de água mineral e comprou um clube de futebol profissional. Também aderiu ao setor de veículos elétricos e tem uma unidade com ações negociadas na Bolsa de Hong Kong, a China Evergrande New Energy Vehicle Group, cuja capitalização de mercado chegou em dado momento a US$ 87 bilhões, mais do que a maioria dos fabricantes de automóveis de todo o mundo na época.
Em 2017, a Evergrande entrou no setor de parques temáticos, com o lançamento de 15 projetos em todo o país que envolveram um investimento total de mais de US$ 100 bilhões, pelos cálculos do “WSJ” com base em dados dos governos locais. Na mesma época, o Dalian Wanda Group, conglomerado que prometera rivalizar com os parques da Disney na China, informou que deixaria o setor depois de ter acumulado muitas dívidas.
Grandes cidades, como Pequim e Xangai, mantiveram um controle rígido sobre a oferta de terrenos para novas construções. Por isso a Evergrande – como muitas outras incorporadoras – voltou-se para cidades menores e mais remotas como Lu’an, com muitas terras para vender.
Quando a Evergrande começou a comprar terrenos em torno de Lu’an, por volta de 2011, ela era uma cidade pacata, conhecida principalmente por seu chá, o Melon Seed. A Evergrande lançou pelo menos meia dúzia de grandes projetos residenciais na área, ao mesmo tempo que outras grandes incorporadoras também entraram de roldão nesse mercado.
Os compradores muitas vezes ficavam horas em filas ou participavam de loterias para conseguir apartamentos. Em 2012, um alto funcionário da Província de Anhui elogiou publicamente a Evergrande, segundo a imprensa local, e disse que seus “pontos fortes em termos de escala e nome de marca faziam dela um empreendimento do nível das ‘dragon heads’ da China, com influência internacional” (o status de dragon head é dado a empresas importantes na área de industrialização agrícola).
Entre 2019 e o fim de setembro de 2021, a Evergrande foi a maior incorporadora de Lu’an em termos de número de apartamentos vendidos antes da conclusão das obras, com 8.123 unidades negociadas antecipadamente, nos cálculos feitos pelo “WSJ” a partir de informações do órgão habitacional de Lu’an.
A Evergrande também acrescentou em seu portfólio edifícios comerciais e um cinema. Em 2019, comprou mais 14 lotes em Lu’an, o que elevou as vendas de terras da cidade naquele ano para mais de US$ 2,6 bilhões, de acordo com a Anhui Land Information Network, empresa de pesquisa que acompanha os leilões de terras do governo. As vendas ajudaram o governo local a aumentar três vezes seu orçamento anual com receitas fiscais.
Mais ou menos nessa época a Evergrande escolheu Lu’an como o local para sediar uma das fábricas da sua subsidiária de veículos elétricos. De acordo com a imprensa local, a empresa informou que produziria até 500 mil carros, geraria US$ 15,5 bilhões em produção industrial a cada ano e contribuiria com US$ 1,2 bilhão em receitas fiscais por ano para o governo local.
Com os projetos residenciais aumentando e os moradores se mudando para prédios concluídos, Lu’an se transformava em uma área de expansão urbana que se estendia por cerca de 15.540 km2, com fileiras de blocos habitacionais cercadas por terras agrícolas. A cidade de Nova York tem cerca de 777 km2.
Crise de liquidez
A Evergrande enfrentou crises de liquidez ao longo dos anos, e sempre as superou. Mas em agosto de 2020, Pequim anunciou planos para reprimir a tomada excessiva de crédito pelas incorporadoras por meio de “três linhas vermelhas”, os limites que impediram a empresa de assumir novas dívidas.
Os imóveis, parques temáticos e subsidiárias de carros elétricos da Evergrande registraram perdas durante o primeiro semestre de 2021. O dinheiro ficou tão curto que no terceiro trimestre que a empresa começou a pagar alguns fornecedores com apartamentos inacabados, segundo noticiou o “WSJ”. Em Lu’an, as queixas inundaram o site do governo local, pois alguns compradores de residências inacabadas temiam perder suas economias de toda a vida ou ficar sem teto na velhice.
Entre os projetos cuja construção parecia ter sido interrompida no mês passado estava uma grande parte inacabada da Yujingwan da Evergrande, ou “Baía do Cenário Imperial”, um complexo que abrange vários quarteirões. Do outro lado da rua, uma mulher de 41 anos, que deu seu nome como Wang, vendia bebidas e alimentos em uma loja de conveniência que abrira em 2017.
Wang disse que comprou um apartamento no ano passado por mais de 400 mil yuans na chamada Sexta Fase do complexo, depois que a Evergrande lhe ofereceu um desconto de cerca de 35%. Ela pediu dinheiro emprestado a amigos e parentes para comprar a nova casa, e contou que a previsão era de que estivesse pronta em 2023.
Ela disse acreditar que o governo, ou talvez uma empresa estatal, intervirá para concluir o projeto. Outros compradores também acreditam nisso.
Não está claro para onde foi o dinheiro que incorporadoras como a Evergrande recolheram de compradores com a venda antecipada de residências. Em muitos casos, com já noticiou o “WSJ”, as incorporadoras usam esse dinheiro como financiamento geral para operações.
O parque temático da Evergrande operava parcialmente durante uma visita no fim de setembro, com algumas atrações de pequena escala e um punhado de restaurantes abertos. Apartamentos incompletos elevavam-se sobre o parque. O carrossel estava fechado.
Fonte: Valor