*Por Maros Degaut
“Na complexa tapeçaria geopolítica do Oriente Médio, as palavras frequentemente dançam entre a retórica pública e a realpolitik subterrânea. No entanto, em momentos de crise aguda, o silêncio pode ressoar com uma eloquência avassaladora, revelando alinhamentos, temores, cálculos estratégicos e dinâmicas regionais muito mais profundos do que qualquer declaração oficial.
O recente ataque de Israel, mirando infraestruturas críticas do programa nuclear iraniano em Natanz, Fordow e Isfahan foi um desses momentos definidores. E o que mais se destacou, para além da precisão dos ataques israelenses, foi a ensurdecedora ausência de condenação por parte de capitais árabes outrora ferozmente antissionistas: Riad, Abu Dhabi, Doha, Amã e o Cairo mantiveram-se, na prática, em um silêncio que vale mais do que mil protestos. Embora esse silêncio não represente manifestação oficial de apoio ao estado judeu, parece significar que a geopolítica regional se reconfigurou de forma fundamental.
Este mutismo estratégico não representa um vácuo de posicionamento, mas um endosso tácito às ações israelenses, um assentimento pragmático. Seu pano de fundo são as batalhas pela supremacia no mundo islâmico e as disputas por maior protagonismo – ou hegemonia – no Oriente Médio.
Arábia Saudita, Emirados Árabes, Catar, Jordânia e Egito são países árabes de maioria muçulmana sunita, para quem o expansionista vizinho persa, de maioria xiita, tornou-se, sob o regime dos aiatolás, o principal elemento de instabilidade e ameaças à paz e segurança regional, para além da professada missão de “varrer Israel da face da terra”.
De fato, desde a Revolução Islâmica de 1979, imbuído do propósito de exportar e impor seu modelo religioso de vida em sociedade, Teerã tem financiado e armado milícias e grupos terroristas, orquestrando guerras por procuração, projetando poder e influência e lançando uma sombra de devastação e desestabilização sobre estados fragmentados pela violência sectária, do Líbano ao Iêmen, passando pelo Iraque e Síria, ameaçando diretamente os interesses vitais e a segurança das monarquias do Golfo, da Jordânia e do Egito.
O regime iraniano, contudo, é um progressivamente esclerosado desde a morte do patrono da Revolução Islâmica, Aiatolá Ruhollah Khomeini, em 1989; seu híbrido de teocracia islâmica com eleições manipuladas tem, nos últimos 35 anos, resultado em paralisia do processo decisório e crescente distanciamento entre Estado e sociedade.
A Segunda Guerra do Golfo, em 2003, e a subsequente queda do regime de Saddam Hussein no Iraque perfizeram oportunidades para que o regime de Teerã “respirasse” e retardasse seu processo de deslegitimação, ora aparentemente em estado irreversível, perante a sociedade iraniana. Os protestos e manifestações das ocorridos nas últimas duas décadas, somados ao crescente isolamento do país, à deterioração econômica e à separação de propósitos entre Estado e sociedade, contudo, conformavam um status quo precário, que poderia ruir como resultado de uma sequência de eventos decisivos.
Israel: parceiro não-oficial na contenção do “perigo persa”
O ataque israelense deflagrado em 13 de junho, ao decapitar a liderança iraniana, virtualmente aniquilar o sistema de defesa aérea do país persa antes do início dos bombardeios e infundir nos potenciais sucessores dos líderes executados elevada pressão psicológica no sentido de que poderão eles ser os próximos alvos das forças israelenses, pode ter dado início à sequência que resultará na derrocada do regime instaurado pela Revolução de 1979.
Diante da crescente ameaça representada pelo regime dos Aiatolás, Israel emerge, para muitos governos de países árabes, não mais como o inimigo primordial, mas como um parceiro não-oficial na contenção de um “perigo persa”, percebido como mais premente e, mesmo, existencial. Nessa perspectiva, um Irã com recursos de poder reduzidos, sobretudo militares, representaria elemento fundamental de interesse comum.
O Oriente Médio de hoje está longe da solidariedade pan-árabe de outrora. O substrato diplomático para essa mudança paradigmática pode ser encontrado nos Acordos de Abraão, assinados a partir de setembro de 2020, e envolvendo Israel, Emirados Árabes, Bahrein e Marrocos.
Essa nova dinâmica regional, ainda em cautelosa expansão, evidencia a forma mais elementar de realpolitik, no contexto da qual os imperativos de segurança nacional e estabilidade política são pressupostos básicos para o desenvolvimento de uma nação.
Nesse contexto, rivalidades históricas são substituídas por novas prioridades e alinhamentos e pela cooperação em áreas tão sensíveis – e improváveis – como defesa e inteligência.
Essa cooperação se estende ao setor privado, com abundantes exemplos de empresas emiráticas e israelenses desenvolvendo conjuntamente materiais de emprego militar ultrassofisticados na área de cibersegurança, defesa antiaérea, comunicações e missilística, dentre outras. Mais do que simbólico, esse tipo de colaboração parece configurar a espinha dorsal de uma nova aliança estratégica em formação, que celebra em silêncio cada revés iraniano.
Neste tabuleiro, as ações de Israel para neutralizar a ameaça nuclear iraniana, longe de serem um ato unilateral de agressão a ser universalmente condenado, podem ser vistas por uma perspectiva distinta: a de um serviço, um “favor” de segurança global.
Em um cenário onde potências ocidentais parecem paralisadas por uma mistura de medo, burocracia e complexidades políticas internas, incapazes de articular uma estratégia unificada e incisiva para impedir que um regime teocrático e agressivo obtenha a arma definitiva, Israel age. A sua disposição de arriscar, de empregar meios não convencionais para lidar com uma ameaça que não é apenas sua, mas de toda a região e, em última instância, do mundo, contrasta com a inação covarde percebida de muitos.
Os países árabes, em seu silêncio cúmplice, parecem entender essa dinâmica melhor do que certos atores globais. Eles preferem um Israel atuante e focado no Irã a um Irã nuclear que possa ditar as regras do jogo regional. Claro, isso também abre espaço para que possam implementar suas próprias políticas de projeção de poder regional.
Estratégia contraproducente
É nesse contexto complexo, onde as alianças se formam em torno de interesses de segurança compartilhados, que a posição do Brasil, expressa em uma patética nota de repúdio a Israel após os recentes acontecimentos, soa particularmente dissonante e estrategicamente contraproducente. Uma postura que se alinha mais com a retórica inflamada de regimes que financiam o terror e são considerados párias internacionais do que com a tradição diplomática equilibrada e pragmática que deveria guiar um país com as aspirações globais do Brasil.
Tal condenação, descolada da intrincada realidade regional e dos interesses de segurança de atores-chave no Oriente Médio, não apenas isola o país em fóruns multilaterais, mas também demonstra uma desconexão perigosa com as dinâmicas que realmente moldam o poder na região.
Seria oportuno que o Parlamento brasileiro, por meio de suas Comissões de Relações Exteriores e Defesa Nacional – CREDEN, na Câmara dos Deputados, e CRE, no Senado Federal – em sua função de guardião dos interesses estratégicos do país, avaliasse a fundo essa deformação na política externa e considerasse mecanismos de pressão legislativa, como a obstrução da pauta (“sine die”) em temas relevantes, como a sabatina de embaixadores, para sinalizar a necessidade de o Poder Executivo reorientar seu curso para um caminho menos destrutivo para a imagem, influência e interesses do Brasil no cenário global e mais alinhado com a realpolitik que emerge do próprio teatro de operações”.
*Marcos Degaut é Doutor em Segurança Internacional, Pesquisador Sênior na University of Central Florida (EUA), ex-Secretário Especial Adjunto de Assuntos Estratégicos da Presidência da República e Ex-Secretário de Produtos de Defesa do Ministério da Defesa
Fonte: Gazeta do Povo