A França deu o último passo, nessa segunda-feira (4), para se tornar o primeiro país do mundo a prever o acesso ao aborto em sua Constituição.
O Congresso francês, que reúne as duas casas do Parlamento em Versalhes para votação quando há mudanças na Constituição, aprovou por ampla maioria o projeto que constitucionaliza o aborto. Dos 852 deputados e senadores reunidos, 780 votaram a favor e 72 contra.
Após a promulgação pelo presidente francês, o que deve acontecer na sexta-feira (8), Dia da Mulher, o artigo 34º da Constituição francesa passará a prever a “liberdade garantida da mulher de recorrer ao direito à interrupção voluntária da gravidez (IVG, sigla usada para se referir ao aborto na França)”.
Raízes históricas por trás da mudança
A decisão, considerada histórica por movimentos feministas e partidos de esquerda, é uma construção de séculos.
A defesa dos direitos femininos na França tem raízes históricas. Já no século XV, a escritora Christine de Pizan defendeu o direito das mulheres à educação. Três séculos depois, Olympe de Gouges criticou a exclusão das mulheres da “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão” na Revolução Francesa de 1789. E em 1949, no livro “O Segundo Sexo”, Simone de Beauvoir estruturou as bases que definem o feminismo moderno ao discutir a opressão da mulher em um mundo dominado pelo homem.
A França também é o país que, ainda no início do século passado, separou a Igreja do Estado ao aprovar em 1905 a Lei da Laicidade, afastando a religião das discussões políticas.
Esses são alguns dos fatores que explicam por que 86% dos franceses apoiam a constitucionalização do aborto, como demonstrou uma pesquisa do final de 2022 – taxa bem superior à do Brasil, onde a aprovação ao aborto é de 39%.
Com o apoio massivo da população francesa, senadores admitiram que votaram a favor do texto para evitar críticas. No último dia 28 de fevereiro, o Senado francês, de maioria direitista, aprovou o projeto por ampla maioria, com 267 votos a favor e 50 contra.
Resposta à revogação do direito nos EUA
O aborto foi legalizado na França em 1975, com a aprovação da lei proposta pela então ministra da Saúde Simone Veil, ícone da emancipação feminina e sobrevivente do Holocausto. Para ser aprovado à época, o projeto se centrava na saúde pública e não nos direitos das mulheres de dispor sobre os seus corpos.
Desde então, a “Lei Veil”, inicialmente bastante restritiva, passou por várias mudanças. A mais recente, em 2022, passou a permitir abortos até a 14ª semana de gravidez, financiados pelo sistema de seguridade social, sem necessidade de justificativas.
As mudanças levaram a França a ser considerada um dos países que mais apoiam o acesso ao aborto no mundo. Desde 2001, uma em cada quatro grávidas interrompe a gestação por aborto na França, de acordo com um relatório parlamentar de 2020.
Mas o gatilho para incluir o acesso ao aborto na Constituição na França veio após a decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos de revogar o direito federal ao aborto, em junho de 2022, e também após o retrocesso dos direitos ao aborto em países como a Hungria e a Polônia.
A experiência de outros países levou à discussão da constitucionalização do aborto a sair dos círculos feministas. Políticos progressistas passaram a defender que o acesso ao aborto fosse incluído na Carta Magna para blindar o tema de eventuais tentativas de revisão também na França, sobretudo diante do avanço da extrema-direita no país.
Na sequência da decisão da Suprema Corte americana, seis projetos de lei para constitucionalizar o direito ao aborto foram apresentadas no Parlamento francês.
O projeto de Mathilde Panot, presidente do La France Insoumise (LFI), foi o que avançou entre eles e foi aprovado na Assembleia Nacional em novembro de 2022. Mas o texto foi alterado no Senado em fevereiro de 2023, por iniciativa de partidos de direita, que substituíram o termo “direito” por “liberdade” da mulher de interromper a gravidez.
Movimentos feministas criticam a expressão, argumentando que a propriedade sobre o corpo deveria ser um direito, não uma liberdade. Também afirmam que a liberdade é a capacidade de fazer algo, enquanto o direito é a garantia de que se a mulher desejar, terá meios para interromper a gravidez. Portanto, o termo liberdade permitiria mais facilmente a um governo restringir as condições de acesso ao aborto.
Para seguir adiante, o projeto de Mathilde Panot precisaria ser aprovado novamente na Assembleia sem alterações, além de passar por um referendo, por ser uma iniciativa do Parlamento e não do governo.
A perspectiva de um referendo, que poderia ser arriscado, levou o governo de Emmanuel Macron a elaborar seu próprio texto, pressionado por movimentos feministas. Dois dias depois da aprovação do projeto de Panot no Senado, o governo chegou ao texto atual com o termo “liberdade garantida”. Uma expressão próxima da formulação do Senado, mas mais vinculativa em termos legais.
Mas imerso em crises políticas, provocadas pela Reforma da Previdência, apenas em outubro do ano passado o governo enviou o texto ao Parlamento.
O projeto foi aprovado então pela Assembleia Nacional em janeiro, por 493 votos e 30 contra. E no dia 18 de fevereiro, pelo Senado.
Em seu discurso no Congresso em Versalhes, nesta segunda-feira (4), o primeiro-ministro francês Gabriel Attal citou a aprovação do projeto como um “passo fundamental” que “ficará na história”. Mas ele mesmo ponderou que a constitucionalização não é um ponto final. “Ainda estamos longe de estar no fim do caminho, mas passo a passo a igualdade está cada vez mais próxima ”, disse Attal.
Movimentos feministas e políticos da oposição afirmam que, em uma sociedade que aprova o aborto, o governo busca colher os dividendos do projeto, mas apontam retrocessos práticos sobre o direito das mulheres à interrupção da gravidez.
De acordo com o “Movimento Francês para o Planejamento Familiar”, 130 clínicas de aborto foram fechadas em 15 anos, o que leva mulheres a fazer longas viagens para realizar o procedimento, dificultando o acesso.
Fonte: CNN Brasil