O Brasil assume a presidência dos Brics no próximo ano e a agenda do país à frente do grupo pode impulsionar o caráter antiocidental que o bloco tem ganhado desde 2023. Com o lema “Fortalecendo a Cooperação do Sul Global para uma Governança mais Inclusiva e Sustentável”, a agenda brasileira na presidência do bloco abraça discussões que contestam a hegemonia ocidental. Nesse sentido, o Brasil dará continuidade ao Brics Pay e tentará impulsionar o Sul Global no apoio por uma nova ordem mundial.
“Na presidência brasileira do Brics, queremos reafirmar a vocação do bloco na luta por um mundo multipolar e por relações menos assimétricas entre os países […] Agora é chegada a hora de avançar na criação de meios de pagamento alternativos para transações entre nossos países”, disse Lula durante a Cúpula de Líderes dos Brics na quarta-feira (23).
Embora a iniciativa tenha um viés econômico que converge com a origem dos Brics, a busca por alternativas comerciais sem o uso do dólar é observada por analistas como uma ação política do bloco. O diplomata e ex-ministro da Fazenda Rubens Ricupero observa que os Brics enfrentam um “duplo processo de descaracterização”, incentivado por China e Rússia.
“Por um lado, estão perdendo o perfil de um grupo que reúne países de grande extensão territorial e população, com a exceção da África do Sul, que representa o continente africano. Por outro lado, o bloco tende a se alinhar cada vez mais com a política externa da China e da Rússia, com um foco antiocidental”, afirmou Ricupero à Gazeta do Povo.
Impulsionado pelos interesses sino-russos, os Brics têm promovido discussões que questionam a hegemonia do Ocidente e da moeda norte-americana no comércio internacional. Tais discussões foram priorizadas neste ano durante a presidência russa e não deve ser diferente no próximo ano, quando o Brasil assume a liderança do bloco.
Presidência brasileira vai impulsionar implementação do Brics Pay
O Brasil assume a presidência rotativa dos Brics em janeiro de 2025 e vai dar sequência a discussões sobre mudanças no sistema financeiro internacional. Conforme anunciado pelo chanceler Mauro Vieira, a presidência brasileira pretende focar na promoção do sistema de pagamentos entre os países membros dos Brics sem a utilização do dólar, incentivando o uso de moedas locais em transações comerciais.
“Temos uma série de iniciativas e de projetos para essa nossa presidência. Um deles é o sistema de pagamento internacional entre os países do Brics, que leva em conta o uso das moedas nacionais e que se possa fazer o comércio entre os países de forma mais célere e menos custosa”, disse Vieira durante coletiva de imprensa nesta quarta (23).
Vieira foi quem presidiu a comitiva brasileira durante a Cúpula de Líderes dos Brics, que ocorreu nesta semana em Kazan, na Rússia. O ministro das Relações Exteriores assumiu a chefia da delegação após o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) ter sua viagem ao encontro cancelada por uma recomendação médica. O petista sofreu uma queda durante o final de semana que ocasionou um traumatismo craniano. Desde então, Lula está em observação.
A iniciativa citada pelo chanceler é o Brics Pay, plataforma de pagamentos que poderá servir de alternativa ao sistema Swift. A implementação do sistema é discutida entre os membros dos Brics desde 2018, mas saiu do papel somente neste ano, sob a presidência russa no bloco.
A motivação para desenrolar as tratativas foi a suspensão da Rússia do Swift, o que afetou seu comércio internacional.
Swift é um sistema de mensagens de pagamentos interbancárias que permite transações financeiras baseadas no dólar entre mais de 200 países. Na prática, ele permite que pessoas, empresas, entidades e governos façam transferências internacionais de dinheiro.
“Se você usa a moeda estadunidense e os Estados Unidos sancionam seu país, você tem dificuldade de acesso a esses valores, [o que impulsiona a busca por alternativas]”, pontua João Nyegray, professor do curso de Negócios Internacionais da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR).
Analistas, porém, enxergam o Brics Pay mais como um movimento político do que econômico. A China disputa com os Estados Unidos a liderança da economia mundial e tenta emplacar o yuan como uma moeda internacional de banco central digital capaz de competir com o dólar, que não tem perspectivas de se tornar digital. Isso se soma ainda ao interesse da Rússia em tentar minimizar seu isolamento causado pelo Ocidente.
Desde que Vladimir Putin ordenou a guerra contra a Ucrânia, a Rússia se tornou o país mais sancionado do mundo. Nesse sentido, o país foi suspenso do Swift – manobra orquestrada pelo G7 em uma tentativa de pressionar Putin a colocar um fim à guerra. Tal suspensão impulsionou o país a buscar alternativas de manter seu comércio internacional.
Reforma da ordem mundial desejada por Lula é distorcida por interesses sino-russos
O desejo de Lula por uma reforma nos tradicionais organismos internacionais não é recente e o petista defende mudanças nas Nações Unidas e nas instituições financeiras mundiais desde seus primeiros mandatos. O presidente Lula deve buscar engajar sua presidência nos Brics em busca de tais reformas, com a intenção de posicionar o chamado “Sul Global” (termo utilizado para designar os países em desenvolvimento) como atores ativos na reconfiguração da atual ordem mundial, hoje marcada pela hegemonia dos Estados Unidos.
Na concepção de analistas, apesar de legítima, essa ambição tem sido distorcida pela crescente influência da China e da Rússia dentro do bloco. Rubens Ricupero, por exemplo, adverte que o grupo dos Brics tem se transformado cada vez mais em um palco para a projeção política e econômica da China, ao mesmo tempo em que oferece espaço para a Rússia romper com seu isolamento internacional após a guerra na Ucrânia.
“Os Brics acrescentam mais um nível de divergência [com o Ocidente] ao se converter em fórum que favorece a projeção da China e enfraquece o isolamento da Rússia após a invasão da Ucrânia”, avalia Ricupero. Para o diplomata, essa visão sino-russa, marcada por um confronto contra o Ocidente, afasta o bloco de alcançar tais objetivos.
“As chances de que o grupo consiga modificar a realidade internacional é praticamente inexistente por uma razão simples: as grandes reformas do sistema internacional […] dependem, antes de mais nada, de um elevado grau de convergência de posições e interesses como existia entre os aliados vitoriosos na Segunda Guerra Mundial. Ora, o que se tem agora é uma aguda divergência, uma tendência ao antagonismo sistemático entre as duas maiores potências [China e EUA] e seus aliados [Ocidente e Brics]”, pontua Ricupero.
Esse antagonismo limita a capacidade do grupo de implementar as mudanças desejadas por Lula e outros líderes. Pesam ainda para essa dificuldade o novo formato dos Brics, atualmente composto, em sua maioria, por países que são considerados ditaduras. Com Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, a expansão do grupo agregou Arábia Saudita, Egito, Emirados Árabes, Etiópia e Irã. De acordo com o Ranking da Democracia do jornal inglês The Economist, apenas Brasil, Índia e África do Sul são consideradas democracias, apesar de classificadas como “falhas”.
Discurso antiocidente também é reproduzido por Lula
Os interesses sino-russos predominam por trás dos Brics e as narrativas dos dois países encontram respaldo no governo do presidente Lula, embora não haja garantia de que o sucesso do bloco se reflita em benefícios para o Brasil. Durante seu discurso na abertura da Cúpula de Líderes dos Brics, que ocorreu por meio de videoconferência, por exemplo, o brasileiro criticou organismos como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial.
O petista ainda ressaltou o trabalho do Novo Banco de Desenvolvimento (NDB), o Banco dos Brics. Ele disse que a instituição foi bem-sucedida onde as “instituições de Bretton Woods continuam falhando”. Ele se referia ao sistema comercial internacional estabelecido pelos Estados Unidos e seus aliados em 1944, que na década de 1970 foi modificado pelo fim da paridade do dólar com o ouro. O mandatário brasileiro também voltou a criticar o enriquecimento das nações desenvolvidas às custas dos países pobres.
“Os fluxos financeiros continuam seguindo para nações ricas. É um Plano Marshall às avessas, em que as economias emergentes e em desenvolvimento financiam o mundo desenvolvido”, disse Lula.
Na avaliação de Rubens Ricupero, as declarações de Lula vão ao encontro às narrativas sino-russas e reforçam a postura antiocidente que os Brics tem adquirido.
“Para chineses e russos, os Brics fazem sentido, pois criam a impressão de que esses dois países não carecem de aliados. O que, porém, ganha um país como o Brasil? Não se percebe bem. A não ser reforçar a impressão de que a política externa de Lula é inspirada por um viés antiamericano e antiocidental, de acordo com o conceito da velha esquerda, hostil ao que percebe como o domínio do sistema internacional pelo poder hegemônico dos EUA e seus aliados”, avalia Ricupero.
O professor João Nyegray, da PUCPR, pontua ainda que a presidência do Brasil no Brics deveria se pautar pela defesa da democracia. “A presidência brasileira precisaria vir acompanhada de questões sobre a promoção dos direitos humanos e da democracia. Do contrário, nós seguiremos fazendo parte de um grupo de Estados que vai ser um compartilhamento de resistência à ordem Ocidental”, avalia.
“Há um grupo de países, dentre os quais o segundo maior país das Américas, que está fazendo coro às intenções de países autoritários. Isso preocupa porque o presidente Lula veio de um partido que dizia defender a democracia nas últimas eleições. Mas, além de fazer esse aceno aos países dos Brics, o próprio PT reconheceu Nicolás Maduro como presidente eleito da Venezuela em uma eleição que foi completamente fraudada”, aponta o docente da PUCPR.
Na noite da quinta-feira (24), o governo venezuelano divulgou uma nota afirmando que o Brasil se opôs à entrada de Caracas no bloco do Brics (Brasil, Rússia, Índia, China, África do Sul, Arábia Saudita, Egito, Etiópia, Emirados Árabes Unidos e Irã) e classificando a decisão diplomática como uma agressão.
Interesses da China e da Rússia sobressaem entre os dos demais países
O analista em relações internacionais Cezar Roedel também avalia que mesmo que o Brasil esteja à frente do Brics durante o próximo ano, são os interesses da China e Rússia que devem sobressair nas discussões do grupo.
Na avaliação de Roedel, o Brasil deve acabar cedendo a essas influências. O analista critica ainda a “subserviência da política externa às autocracias” que caracterizam a política externa do presidente Lula, sob a influência do embaixador Celso Amorim.
“Lula e Amorim acreditam em uma nova ordem hipotética, regida por um eixo autocrático, estruturada a partir de uma nova moeda fiduciária, onde o Brasil teria um lugar de “liderança” ou “destaque”. ocorre que na realidade apenas seria uma marionete russo-chinesa”, avalia.
Amorim foi chanceler de Lula em seus primeiros mandatos e nesta gestão petista ocupa o cargo de assessor para assuntos internacionais da Presidência. Apesar do posto a serviço do Palácio do Planalto, Amorim é apontado como o principal articulador da política externa do presidente Lula neste mandato. Foi ele, inclusive, a figura responsável por desenrolar o plano sino-brasileiro por um cessar-fogo na Ucrânia.
Fonte: Gazeta do Povo