O outono em Helsinque não é para amadores. Os termômetros alcançam gélidas temperaturas de um minuto para outro, fazendo com que a população, habituada que está à moldura invernal, se cubra sob pesados mantôs ou se abrigue em uma boa sauna, presente em todas as casas. Desde o aeroporto, de atmosfera clean, até as sossegadas ruas da capital finlandesa, avistam-se placas em que empresas de ramos variados sublinham sua performance na redução de emissão de carbono — marca das mais valorizadas num país plantado na próspera Escandinávia, ao norte da Europa, que coloca 100% de suas engrenagens para trabalhar em prol da tão necessária, e para muitos ainda tão distante, transição verde. Pois esse naco do globo encravado entre a Rússia e a Suécia, enaltecido pelos admiráveis indicadores socioeconômicos, acaba de virar campeão global em sustentabilidade, segundo um relatório da ONU que serve de espelho às demais nações.
Diante do avanço do aquecimento da Terra, o território finlandês se converteu em um eficaz laboratório para experimentos que têm resguardado o ambiente sem frear o ímpeto inovador. A mais visível mudança de hábitos nas ruas tomadas de culinária ousada e um pontilhado de lojas de design é o espírito que rege o dia a dia em todas as faixas etárias — desde o garotinho que faz sua parte na seara da reciclagem ao lançar dejetos na lata de lixo certa (90% das garrafas plásticas já são recicladas) até cidadãos que praticam uma mania nacional: usar roupas, utensílios, livros, tudo passado de mão em mão num ultrassofisticado mercado de brechós. Pilotando prestigiadas panelas de cobre na capital, o chef Janne Kylmämaa, 36 anos, é um desses radicais seguidores da cartilha verde. Chama a atenção que, num restaurante tão elegante como o dele, nenhum talher faça par com outro. “Compro tudo usado, sem combinar mesmo, e não desperdiço nenhuma parte dos alimentos, para não gerar resíduos”, explica.
Tal qual seus vizinhos — dois deles, Suécia e Dinamarca, em segundo e terceiro lugar no mesmo rol de responsabilidade da ONU —, a Finlândia se guia pela chamada economia circular, baixando ao máximo o desperdício, reaproveitando tudo o que dá e bolando produtos não nocivos ao verde, como os veículos elétricos, abastecidos em pontos que se espalham pela cidade. Imagine um lugar onde não se ouve zumbido de motores a combustão, mas apenas o deslizar das bicicletas e o atrito na calçada das botas dos cidadãos, afeitos a caminhadas. A previsão é de que o conjunto da frota se torne verde em apenas cinco anos — peça central de um bem engendrado plano de transição energética que tem como meta a neutralidade nas emissões de carbono até 2030. Nos anos 1990, quando sustentabilidade ainda era um vocábulo com muitas letras e pouco significado, a Finlândia instituiu um imposto sobre o CO2. Quem ultrapassar o limite paga uma taxa ao Estado, indutor de um leque de políticas que vêm transformando o cenário que, rumo ao norte, proporciona a beleza da aurora boreal.
Com aportes vultosos nessa transição, dá-lhe substituir combustíveis fósseis por alternativas limpas — 94% da energia nacional já vem de fontes renováveis, entre eólica, solar e nuclear. “Usamos a natureza a nosso favor, aproveitando o que há de abundante por aqui, como o vento”, diz Berndt Schalin, CEO da Flexens, empresa localizada no complexo de Kokkola, um dos grandes centros industriais voltados para inovações energéticas na União Europeia.
Ainda que a diferença de dimensões entre Brasil e Finlândia, com seus 5,5 milhões de habitantes e área 25 vezes menor, seja abissal, vale observar a fórmula implantada naquelas bandas do Ártico. A existência de vastas florestas une os dois países. No lado finlandês, o desmatamento é rigorosamente regulamentado e fiscalizado, com métodos de manejo que garantem a regeneração das árvores e a preservação de regiões ecologicamente vitais. “Quando cortamos uma árvore, não só a replantamos, como utilizamos todas as partes dela para produzir bioprodutos, como embalagens recicláveis”, conta Ilkka Hämälä, CEO da Metsä, companhia de produção de madeira e celulose.
A Escandinávia, que costuma disparar nos rankings de sustentabilidade, foi a primeira região do globo a ter o estalo — precisava agir para livrar sua economia da fuligem industrial. Em 1991, a Suécia se adiantou e decidiu taxar as emissões de carbono, algo então sem precedentes. Foi um passo relevante que, ao envolver altas cifras, estimulou as energias renováveis. A ideia pegou entre os vizinhos, que arregaçaram as mangas décadas antes dos demais países do mundo desenvolvido, inclusive os que estavam logo ali, na Europa. A estabilidade econômica, sim, foi um fator que deu gás para que esse pedaço do planeta vigorosamente abraçasse políticas verdes. E o Estado, em todos eles, se revelou estratégico na hora de prover treinamento à mão de obra dos tempos do carvão que, a partir dali, precisaria trabalhar sob a nova lógica.
A congelante área em que a Finlândia está fincada vive uma daquelas situações que rendem imagens estarrecedoras e algo futurista. Situado no extremo norte do país, o Ártico registra elevação de até 10 graus na comparação com o período pré-industrial, causando incêndios como nunca antes se viu, degelo e subtração da farta biodiversidade. A mentalidade das novas gerações é toda centrada na preservação do que permanece lá — uma coleção de cartões-postais de tirar o fôlego que compõem a identidade nacional e, com suas notáveis riquezas, movem comércio e indústria. “Manter a natureza a salvo é certamente o melhor de todos os recursos”, resume Juha Peltomäki, diretor de indústria da organização Business Finland. Eis aí uma aula que meninos e meninas finlandesas recebem desde muito cedo, como uma disciplina que integra sua moderna grade escolar. É uma lição para a vida toda e que deveria influenciar o resto do mundo.
Fonte: VEJA