No próximo dia 12 de outubro, o carimbo dos passaportes, um dos maiores símbolos das viagens internacionais, sofrerá seu mais duro golpe em direção à aposentadoria. A partir desse dia, 29 países europeus implantarão um sistema que vai modernizar a saída e a entrada de pessoas em suas fronteiras. Curiosamente, a mudança está marcada para o aniversário da chegada de Colombo às Américas, o marco que deixou o mundo muito mais interconectado e globalizado.
A novidade, chamada Sistema de Entrada/Saída, identificará os viajantes por meio de dados biométricos, como impressões digitais e imagem facial. A ideia, de acordo com a União Europeia, é agilizar o tráfego nos aeroportos e aumentar a segurança nas fronteiras.
Esse é o maior passo rumo ao fim do modelo analógico e cada vez mais anacrônico dos passaportes – que são, grosso modo, cadernetas com papéis carimbados. Isso porque alguns dos maiores pesos-pesados do turismo mundial estão envolvidos. França, Espanha, Itália e Alemanha, respectivamente 1º, 2º, 5º e 7º países que mais receberam passageiros estrangeiros em 2024, segundo a Organização Mundial do Turismo, estão entre os que abandonarão os carimbos.
Mas a Europa está longe de liderar essa transição. Diversos países, em outros continentes, já trocaram os carimbos por outros métodos. A pioneira Austrália usa biometria há mais de dez anos. Coreia do Sul, Hong Kong e até nossos vizinhos Argentina e Peru estão seguindo a tendência, senão total, pelo menos parcialmente.
No ano passado, o Changi, em Singapura, eleito diversas vezes o melhor do mundo, tornou-se o primeiro aeroporto do mundo a dispensar totalmente os passaportes. Cabines automatizadas, com o uso de dados biométricos, controlam o entra e sai de passageiros.
Não quer dizer que o passaporte foi aposentado de vez. Mesmo em Singapura, visitantes estrangeiros ainda precisam carregá-lo, para o caso de uma eventualidade. Além disso, quem não estiver viajando para um desses polos da modernidade aeroportuária, como Dubai ou Seul, ainda vai precisar fazer o procedimento analógico de sempre ao adentrar nas fronteiras de um país.
Mas é questão de tempo até que o documento, em sua versão de papel, vire um artefato do passado. Segundo um estudo da consultoria americana Oliver Wyman, em 2030 a biometria já será um método mais comum do que a checagem manual nos aeroportos. “Por meio de esforços coordenados por governos e órgãos reguladores, há uma perspectiva de termos uma identidade digital reconhecida internacionalmente para todos os passageiros até 2050”, diz a pesquisa.
Isso significa que não só o passaporte, mas cartões de embarque, vistos, carteiras de vacinação e de habilitação, certidões e quaisquer outros documentos impressos deverão estar unificados e digitalizados, acessíveis na nuvem ao escanear nosso rosto. Viagens exigirão cada vez menos papelada.
Ou seja, o passaporte continuará existindo, só que de outra forma. Essa mudança será significativa, mas apenas mais uma etapa de sua longa e curiosa história.
O passaporte, antes do passaporte que conhecemos
O termo vem do francês antigo “passeport”. Surgiu no século 16 para denominar o documento que autorizava uma pessoa a entrar e sair do porto ou da muralha (que também era chamada de “porte”) de uma cidade.
Com o estabelecimento dos Estados modernos, e à medida que viagens de longa distância ficaram mais comuns, que o comércio internacional cresceu e ficou mais conectado e que o turismo contemporâneo surgiu, esse controle ganhou importância. Foi assim que o Brasil adotou o passaporte, em 1820, antes mesmo da independência.
Mas foi só depois da Primeira Guerra Mundial que o documento começou a ficar com uma cara mais semelhante à que conhecemos. A Liga das Nações, precursora da ONU, incentivou a ideia de um padrão global para o passaporte.
Isso porque o que não existia naquela época era padrão. No início do século passado, o documento podia variar de tamanho, estrutura e informações exibidas. O passaporte britânico, por exemplo, era uma página dobrada em oito partes guardada em uma capa de papelão. A foto, então, nem se fala.
Não havia regras, e naquele tempo fotografia era um negócio caro, nem todos podiam pagar por um retrato. Então, tinha gente que recortava fotos antigas e colava, ou fazia passaportes em grupo (caso comum entre refugiados, que precisavam de uma saída rápida de seus países). Pessoas apareciam de chapéu, de véu, caçando com o cachorro, remando ou tocando violão. Podiam aparecer sorrindo ou sérias, não importava.
A caderneta com o brasão, fotografia de rosto sério, com fundo neutro, informações básicas de identidade (e não descrições como “nariz grande”) e uma série de páginas para serem preenchidas pelos carimbos levou ainda um tempo para se estabelecer. Mas, quando se firmou, virou um símbolo indissociável de viagem internacional, mais do que apenas um documento.
Isso se deve, especialmente, aos carimbos. Afinal, é por causa deles que os passaportes ganham um caráter mais customizado, fugindo da padronização proposta há mais de cem anos. Cada carimbo é uma lembrança, uma história de viagem. Passaportes recheados de brasões diferentes marcados a tinta conferem um status de pessoa viajada.
Tom Topol, colecionador e autor de livros sobre passaportes, podia se mostrar saudosista e temeroso com o futuro do documento. Mas não. “Passaportes digitais, o declínio dos carimbos, tecnologias sem contato e autenticação biométrica estão transformando a experiência de viagem. Temos que nos adaptar”, disse, à GALILEU.
“Adotar a tecnologia aumenta a conveniência e garante uma viagem mais segura e eficiente. Nessa era de mudanças, uma coisa é constante: o fascínio de explorar o mundo”.
Além do mais, ele tem motivos para ser otimista. “Para colecionadores de passaportes antigos como eu, isso significa que esses itens terão valor histórico.” E valor monetário, provavelmente. Se o passaporte de Marilyn Monroe já foi vendido em um leilão, em 2007, por US$ 115 mil, imagine o valor desses documentos carimbados no futuro.
Fonte: GALILEU