No dia 31 de outubro de 1517, o padre e professor Martinho Lutero, de 33 anos, enviou um documento a seu superior, o arcebispo de Mainz, Alberto de Bradenburg. O título deixava claro o assunto em questão: “Disputatio pro declaratione virtutis indulgentiarum”. Em tradução livre, a “Contestação sobre o poder e a eficácia das indulgências”.
O religioso estava incomodado com a visita do frei dominicano Johann Tetzel a Wittenberg, onde Lutero era responsável por 11 paróquias. Tetzel havia passado pela região para vender indulgências, como eram chamados documentos que garantiam perdão dos pecados, quaisquer que fossem eles – mas o benefício tinha prazo de validade: expirava em oito anos.
O dinheiro seria usado para construir a Basílica de São Pedro, no Vaticano, que seria inaugurada apenas em 1626. “Por que o papa, cuja fortuna hoje é maior do que a dos mais ricos Crassos, não constrói com seu próprio dinheiro ao menos esta Basílica de São Pedro, ao invés de fazê-lo com o dinheiro dos pobres fiéis?”, Lutero pergunta em seu texto.
Há controvérsias sobre o dia exato em que ele de fato pregou as teses na porta da Igreja de Todos os Santos, mas é inegável o impacto que sua mensagem produziu. Era comum que argumentações teológicas fossem anexadas nas entradas dos templos católicos, mas a retórica do religioso, impulsionada pela força de suas frases curtas e de grande impacto, incentivou outros padres, de outros países europeus inclusive, a questionar dogmas e práticas do catolicismo da época.
Lutero seria excomungado em 1521, e, protegido em um castelo da região de Wittenberg, escreveu uma tradução da Bíblia para o idioma local. Publicado em 1534, o trabalho é considerado decisivo, inclusive, para a formação da língua alemã moderna.
Aos 41 anos, Lutero casou-se com a ex-freira Katharina von Bora, de 26. Ele morreu em 1546 e foi enterrado junto ao púlpito da igreja onde havia anexado suas 95 teses. Seu objetivo não era romper com o catolicismo, mas sim revigorá-lo. Na prática, o documento acabou por se tornar a certidão de nascimento do movimento protestante.
Leia a íntegra do documento, traduzida do latim e com ortografia atualizada
“Por amor à verdade e no empenho de elucidá-la, discutir-se-á o seguinte em Wittenberg, sob a presidência do reverendo padre Martinho Lutero, mestre de Artes e de Santa Teologia e professor catedrático desta última, naquela localidade. Por esta razão, ele solicita que os que não puderem estar presentes e debater conosco oralmente o façam por escrito, mesmo que ausentes. Em nome do nosso Senhor Jesus Cristo. Amém.
- “Ao dizer: “Fazei penitência”, etc. [Mt 4.17], o nosso Senhor e Mestre Jesus Cristo quis que toda a vida dos fiéis fosse penitência.
- Esta expressão não pode ser entendida no sentido da penitência sacramental (isto é, da confissão e satisfação celebrada pelo ministério dos sacerdotes).
- No entanto, ela não se refere apenas a uma penitência interior; sim, a penitência interior seria nula se, externamente, não produzisse toda sorte de mortificação da carne.
- Por consequência, a pena perdura enquanto persiste o ódio de si mesmo (isto é a verdadeira penitência interior), ou seja, até a entrada no reino dos céus.
- O papa não quer nem pode dispensar de quaisquer penas senão daquelas que impôs por decisão própria ou dos cânones.
- O papa não pode remitir culpa alguma, senão declarando e confirmando que ela foi perdoada por Deus, ou, sem dúvida, remitindo-a nos casos reservados para si; se estes forem desprezados, a culpa permanecerá por inteiro.
- Deus não perdoa a culpa de qualquer pessoa sem, ao mesmo tempo, sujeitá-la, em tudo humilhada, ao sacerdote, seu vigário.
- Os cânones penitenciais são impostos apenas aos vivos; segundo os mesmos cânones, nada deve ser imposto aos moribundos.
- Por isso o Espírito Santo nos beneficia através do papa quando este, em seus decretos, sempre exclui a circunstância da morte e da necessidade.
- Agem mal e sem conhecimento de causa aqueles sacerdotes que reservam aos moribundos penitências canônicas para o purgatório.
- Essa erva daninha de transformar a pena canônica em pena do purgatório parece ter sido semeada enquanto os bispos certamente dormiam.
- Antigamente se impunham as penas canônicas não depois, mas antes da absolvição, como verificação da verdadeira contrição.
- Através da morte, os moribundos pagam tudo e já estão mortos para as leis canônicas, tendo, por direito, isenção das mesmas.
- Saúde ou amor imperfeito no moribundo necessariamente traz consigo grande temor, e tanto mais, quanto menor for o amor.
- Este temor e horror por si sós já bastam (para não falar de outras coisas) para produzir a pena do purgatório, uma vez que estão próximos do horror do desespero.
- Inferno, purgatório e céu parecem diferir da mesma forma que o desespero, o semidesespero e a segurança.
- Parece necessário, para as almas no purgatório, que o horror diminua na medida em que cresce o amor.
- Parece não ter sido provado, nem por meio de argumentos racionais nem da Escritura, que elas se encontram fora do estado de mérito ou de crescimento no amor.
- Também parece não ter sido provado que as almas no purgatório estejam certas e seguras de sua bem-aventurança, ao menos não todas, mesmo que nós, de nossa parte, tenhamos plena certeza.
- Portanto, sob remissão plena de todas as penas o papa não entende simplesmente todas, mas somente aquelas que ele mesmo impôs.
- Erram, portanto, os pregadores de indulgências que afirmam que a pessoa é absolvida de toda pena e salva pelas indulgências do papa.
- Com efeito, ele não dispensa as almas no purgatório de uma única pena que, segundo os cânones, elas deveriam ter pagado nesta vida.
- Se é que se pode dar algum perdão de todas as penas a alguém, ele certamente só é dado aos mais perfeitos, isto é, pouquíssimos.
- Por isso, a maior parte do povo está sendo necessariamente ludibriada por essa magnífica e indistinta promessa de absolvição da pena.
- O mesmo poder que o papa tem sobre o purgatório de modo geral, qualquer bispo e cura têm em sua diocese e paróquia em particular.
- O papa faz muito bem ao dar remissão às almas não pelo poder das chaves (que ele não tem), mas por meio de intercessão.
- Pregam doutrina humana os que dizem que, tão logo tilintar a moeda lançada na caixa, a alma sairá voando.
- Certo é que, ao tilintar a moeda na caixa, podem aumentar o lucro e a cobiça; a intercessão da Igreja, porém, depende apenas da vontade de Deus.
- E quem é que sabe se todas as almas no purgatório querem ser resgatadas? Diz-se que este não foi o caso com S. Severino e S. Pascoal.
- Ninguém tem certeza da veracidade de sua contrição, muito menos de haver conseguido plena remissão.
- Tão raro como quem é penitente de verdade é quem adquire autenticamente as indulgências, ou seja, é raríssimo.
- Serão condenados em eternidade, juntamente com seus mestres, aqueles que se julgam seguros de sua salvação através de carta de indulgência.
- Deve-se ter muita cautela com aqueles que dizem serem as indulgências do papa aquela inestimável dádiva de Deus através da qual a pessoa é reconciliada com Deus.
- Pois aquelas graças das indulgências se referem somente às penas de satisfação sacramental, determinadas por seres humanos.
- Não pregam cristãmente os que ensinam não ser necessária a contrição àqueles que querem resgatar ou adquirir breves confessionais.
- Qualquer cristão verdadeiramente arrependido tem direito à remissão plena de pena e culpa, mesmo sem carta de indulgência.
- Qualquer cristão verdadeiro, seja vivo, seja morto, tem participação em todos os bens de Cristo e da Igreja, por dádiva de Deus, mesmo sem carta de indulgência.
- Mesmo assim, a remissão e participação do papa de forma alguma devem ser desprezadas, porque (como disse) constituem declaração do perdão divino.
- Até mesmo para os mais doutos teólogos é dificílimo exaltar perante o povo, ao mesmo tempo, a liberalidade das indulgências e a verdadeira contrição.
- A verdadeira contrição procura e ama as penas, ao passo que a abundância das indulgências as afrouxa e faz odiá-las, pelo menos dando ocasião para tanto.
- Deve-se pregar com muita cautela sobre as indulgências apostólicas, para que o povo não as julgue erroneamente como preferíveis às demais boas obras do amor.
- Deve-se ensinar aos cristãos que não é pensamento do papa que a compra de indulgências possa de alguma forma ser comparada com as obras de misericórdia.
- Deve-se ensinar aos cristãos que, dando ao pobre ou emprestando ao necessitado, procedem melhor do que se comprassem indulgências.
- Ocorre que através da obra de amor cresce o amor e a pessoa se torna melhor, ao passo que com as indulgências ela não se torna melhor, mas apenas mais livre de pena.
- Deve-se ensinar aos cristãos que quem vê um carente e o negligencia para gastar com indulgências obtém para si não as indulgências do papa, mas a ira de Deus.
- Deve-se ensinar aos cristãos que, se não tiverem bens em abundância, devem conservar o que é necessário para sua casa e de forma alguma desperdiçar dinheiro com indulgência.
- Deve-se ensinar aos cristãos que a compra de indulgências é livre e não constitui obrigação.
- Deve-se ensinar aos cristãos que, ao conceder indulgências, o papa, assim como mais necessita, da mesma forma mais deseja uma oração devota a seu favor do que o dinheiro que se está pronto a pagar.
- Deve-se ensinar aos cristãos que as indulgências do papa são úteis se não depositam sua confiança nelas, porém extremamente prejudiciais se perdem o temor de Deus por causa delas.
- Deve-se ensinar aos cristãos que, se o papa soubesse das exações dos pregadores de indulgências, preferiria reduzir a cinzas a Basílica de S. Pedro do que edificá-la com a pele, a carne e os ossos de suas ovelhas.
- Deve-se ensinar aos cristãos que o papa estaria disposto – como é seu dever – a dar do seu dinheiro àqueles muitos de quem alguns pregadores de indulgências extraem ardilosamente o dinheiro, mesmo que para isto fosse necessário vender a Basílica de S. Pedro.
- Vã é a confiança na salvação por meio de cartas de indulgências, mesmo que o comissário ou até mesmo o próprio papa desse sua alma como garantia.
- São inimigos de Cristo e do papa aqueles que, por causa da pregação de indulgências, fazem calar por inteiro a palavra de Deus nas demais igrejas.
- Ofende-se a palavra de Deus quando, em um mesmo sermão, se dedica tanto ou mais tempo às indulgências do que a ela.
- A atitude do papa é necessariamente esta: se as indulgências (que são o menos importante) são celebradas com um toque de sino, uma procissão e uma cerimônia, o Evangelho (que é o mais importante) deve ser anunciado com uma centena de sinos, procissões e cerimônias.
- Os tesouros da Igreja, dos quais o papa concede as indulgências, não são suficientemente mencionados nem conhecidos entre o povo de Cristo.
- É evidente que eles certamente não são de natureza temporal, visto que muitos pregadores não os distribuem tão facilmente, mas apenas os ajuntam.
- Eles tampouco são os méritos de Cristo e dos santos, pois estes sempre operam, sem o papa, a graça do ser humano interior e a cruz, a morte e o inferno do ser humano exterior.
- Lourenço disse que os pobres da Igreja são seus tesouros, empregando, no entanto, a palavra como era usada em sua época.
- É sem temeridade que dizemos que as chaves da Igreja, que lhe foram proporcionadas pelo mérito de Cristo, constituem este tesouro.
- Pois está claro que, para a remissão das penas e dos casos, o poder do papa por si só é suficiente.
- O verdadeiro tesouro da Igreja é o santíssimo Evangelho da glória e da graça de Deus.
- Este tesouro, entretanto, é o mais odiado, e com razão, porque faz com que os primeiros sejam os últimos.
- Em contrapartida, o tesouro das indulgências é o mais benquisto, e com razão, pois faz dos últimos os primeiros.
- Por esta razão, os tesouros do Evangelho são as redes com que outrora se pescavam homens possuidores de riquezas.
- Os tesouros das indulgências, por sua vez, são as redes com que hoje se pesca a riqueza dos homens.
- As indulgências apregoadas pelos seus vendedores como as maiores graças realmente podem ser entendidas como tal, na medida em que dão boa renda.
- Entretanto, na verdade elas são as graças mais ínfimas em comparação com a graça de Deus e a piedade da cruz.
- Os bispos e curas têm a obrigação de admitir com toda a reverência os comissários de indulgências apostólicas.
- Têm, porém, a obrigação ainda maior de observar com os dois olhos e atentar com ambos os ouvidos para que esses comissários não preguem os seus próprios sonhos em lugar do que lhes foi incumbido pelo papa.
- Seja excomungado e maldito quem falar contra a verdade das indulgências apostólicas.
- Seja bendito, porém, quem ficar alerta contra a devassidão e licenciosidade das palavras de um pregador de indulgências.
- Assim como o papa com razão fulmina aqueles que de qualquer forma procuram defraudar o comércio de indulgências
- muito mais deseja fulminar aqueles que, a pretexto das indulgências, procuram defraudar a santa caridade e verdade.
- A opinião de que as indulgências papais são tão eficazes ao ponto de poderem absolver um homem mesmo que tivesse violentado a mãe de Deus, caso isso fosse possível, é loucura.
- Afirmamos, pelo contrário, que as indulgências papais não podem anular sequer o menor dos pecados veniais no que se refere à sua culpa.
- A afirmação de que nem mesmo S. Pedro, caso fosse o papa atualmente, poderia conceder maiores graças é blasfêmia contra São Pedro e o papa.
- Afirmamos, ao contrário, que também este, assim como qualquer papa, tem graças maiores, quais sejam o Evangelho, os poderes, os dons de curar, etc., como está escrito em 1 Co 12.
- É blasfêmia dizer que a cruz com as armas do papa, insignemente erguida, equivale à cruz de Cristo.
- Terão que prestar contas os bispos, curas e teólogos que permitem que semelhantes conversas sejam difundidas entre o povo.
- 81 Essa licenciosa pregação de indulgências faz com que não seja fácil, nem para os homens doutos, defender a dignidade do papa contra calúnias ou perguntas, sem dúvida argutas, dos leigos.
- Por exemplo: por que o papa não evacua o purgatório por causa do santíssimo amor e da extrema necessidade das almas – o que seria a mais justa de todas as causas –, se redime um número infinito de almas por causa do funestíssimo dinheiro para a construção da basílica – que é uma causa tão insignificante?
- Do mesmo modo: por que se mantêm as exéquias e os aniversários dos falecidos e por que ele não restitui ou permite que se recebam de volta as doações efetuadas em favor deles, visto que já não é justo orar pelos redimidos?
- Do mesmo modo: que nova piedade de Deus e do papa é essa: por causa do dinheiro, permitem ao ímpio e inimigo redimir uma alma piedosa e amiga de Deus, porém não a redimem por causa da necessidade da mesma alma piedosa e dileta, por amor gratuito?
- Do mesmo modo: por que os cânones penitenciais – de fato e por desuso já há muito revogados e mortos – ainda assim são remidos com dinheiro, pela concessão de indulgências, como se ainda estivessem em pleno vigor?
- Do mesmo modo: por que o papa, cuja fortuna hoje é maior do que a dos mais ricos Crassos, não constrói com seu próprio dinheiro ao menos esta Basílica de São Pedro, ao invés de fazê-lo com o dinheiro dos pobres fiéis?
- Do mesmo modo: o que é que o papa perdoa e concede àqueles que, pela contrição perfeita, têm direito a remissão e participação plenária?
- Do mesmo modo: que benefício maior se poderia proporcionar à Igreja do que se o papa, assim como agora o faz uma vez, da mesma forma concedesse essas remissões e participações 100 vezes ao dia a qualquer dos fiéis?
- Já que, com as indulgências, o papa procura mais a salvação das almas do que o dinheiro, por que suspende as cartas e indulgências outrora já concedidas, se são igualmente eficazes?
- Reprimir esses argumentos muito perspicazes dos leigos somente pela força, sem refutá-los apresentando razões, significa expor a Igreja e o papa à zombaria dos inimigos e desgraçar os cristãos.
- Se, portanto, as indulgências fossem pregadas em conformidade com o espírito e a opinião do papa, todas essas objeções poderiam ser facilmente respondidas e nem mesmo teriam surgido.
- Fora, pois, com todos esses profetas que dizem ao povo de Cristo: “Paz, paz!” sem que haja paz!
- Que prosperem todos os profetas que dizem ao povo de Cristo: “Cruz! cruz!” sem que haja cruz!
- Devem-se exortar os cristãos a que se esforcem por seguir a Cristo, seu cabeça, através de penas, da morte e do inferno.
- e, assim, a que confiem que entrarão no céu antes através de muitas tribulações do que pela segurança da paz”.
Fontes: Biblioteca Nacional Digital do Brasil e Gazeta do Povo





