Pelo menos dois casos recentes, um em São Paulo e outro em Santa Maria (RS), reacenderam o alerta sobre golpes envolvendo a organização de formaturas. No caso da turma de Medicina da USP, quase R$ 1 milhão foram desviados da conta da comissão organizadora da festa. Na turma de Farmácia da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), o volume foi bem menor: R$ 13 mil.
Do ponto de vista legal, um representante que se apropria de valores pertencentes às pessoas que representa, ou que usa esses valores sem autorização comete um “ato de violência contra o patrimônio”. Mas por trás de atitudes com possíveis implicações jurídicas, há elementos de finanças comportamentais que ajudam a explicar, em partes, tais episódios.
Aquiles Mosca, responsável pela área comercial, marketing e digital no BNP Paribas Asset Management e professor de finanças comportamentais e gestão de ativos destaca ao menos três fatores importantes comuns em casos de grupos que são lesados financeiramente por um de seus membros.
1) Dinheiro da casa
Chegar a um cassino, jogar e apostar sem gastar nada, com a chance de ganhar algo ao final da roleta. Quem já visitou um cassino deve ter passado por essa situação. A entrega de fichas gratuitas, o chamado “dinheiro da casa” é uma prática comum que tem por trás um objetivo maior: fazer com que a pessoa tome gosto pela aposta e, posteriormente, gaste seu próprio dinheiro.
Na avaliação de Mosca, as situações que levaram a perda de recursos da formatura têm pontos em comum com o conceito. “Quando o dinheiro é dado por outro, a pessoa se sente autorizada a usar o recurso sem culpa. O que se vê nesses casos é um dinheiro acessível, com certa autonomia para ser gasto. Elas desenvolvem o gosto por isso”, sustenta.
No caso da Medicina da USP, a turma 106 divulgou uma nota em que alega que Alicia Muller, que era presidente da comissão, descumpriu o estatuto ao movimentar o montante sem a assinatura de nenhum outro membro. Ao transferir o dinheiro para a conta pessoal dela em 2021, a jovem teria realizado apostas de cerca de R$ 416 mil em casas lotéricas. Segundo a Polícia Civil, ela faturou, no total, R$ 326 mil em premiações da Lotofácil depois de realizar dezenas de jogos.
2) “Eu mereço”
Os dois casos que ganharam notoriedade têm em comum a ação de pessoas que fazem parte da comissão de formatura, um trabalho que começa com muita antecedência. Em alguns casos, logo nos primeiros anos da graduação. A complexidade do trabalho pode aumentar a depender do tamanho da turma. No caso da USP, por exemplo, ao todo 110 alunos dependiam desse trabalho. “A pessoa avalia que está todo mundo só ‘pagando boleto’ enquanto ela trabalha. Logo, vem a percepção de merecimento, de que merece usar os recursos alheios para além do que o mandato prevê”, explica.
Essa “recompensa” é acessada aos poucos. Na medida em que ninguém percebe as saídas, a pessoa tem uma confirmação de que seu comportamento está certo (ainda não que não esteja). E, portanto, é um incentivo para reincidir.
No caso do Rio Grande do Sul, a jovem acusada de sumir com o dinheiro alega que como tudo estava em seu nome e era ela quem assumia tudo sem ser cobrada a prestar contas pelos colegas – o que eles negam -. Para a estudante “parecia ser um dinheiro que era meu, entendeu? Não que justifique eu ter gasto, mas na minha cabeça parecia ser meu”, explicou, sob anonimato, em entrevista ao jornal Diário de Santa Maria.
3) Habituação
É o termo para descrever quando a pessoa, ao longo do tempo, se habitua a fazer algo que parece aceitável, mas não é. A explicação é resumida, mas descreve um processo longo de erros cometidos frequentemente. Mesmo estando errada, a pessoa continua com o comportamento, como o desvio dos recursos.
Na situação envolvendo a 121ª turma de Farmácia da UFSM, os alunos lesados afirmam que a colega responsável pela tesouraria da comissão teria feito procedimentos de tatuagens e piercings, e emprestado dinheiro para a mãe. A turma registrou boletim de ocorrência na Delegacia de Polícia Civil de Santa Maria (DPPA). A jovem diz que já devolveu parte do valor usado indevidamente, mas que não tem previsão de quando poderá quitar todo o saldo.
João Pedro Martinez Pinheiro, advogado e sócio do escritório Ferro, Castro Neves, Daltro & Gomide Advogados reforça que, mesmo diante do estresse da perda do dinheiro, o grupo afetado precisa ter calma antes de agir.
“Se a orientação jurídica não for capaz de identificar chances reais de recuperação dos valores [tarefa que demandará criatividade do advogado], o grupo deve estar bem informado para que decida, conscientemente, se quer conviver com um processo que pode levar anos para, ao final, só talvez receber alguma coisa”, diz.
4) Posso investir dinheiro dos outros?
Outro aspecto que chama atenção é sobre a realização de investimentos envolvendo os recursos coletivos. No caso de São Paulo, Alicia Muller alegou, por meio de mensagens enviadas pelo Whatsapp aos colegas, ter perdido cerca de R$ 800 mil que teriam sidos investidos em “péssimas aplicações”. Em depoimento à Polícia Civil, ela disse que resolveu administrar o dinheiro por conta própria porque a empresa contratada para isso não estava prestando um bom serviço. Alicia ainda confessou o crime de apropriação indébita ao afirmar que usou parte dos R$ 937 mil “para benefício próprio”.
A aplicação de recursos coletivos pode ser realizada, desde que se observando alguns critérios fundamentais, como a criação de mecanismos que impeçam uma só pessoa de tomar decisões. ‘É preciso criar uma governança do grupo”, diz, Flavio Humberto Pretti, planejador financeiro pela Associação do Planejamento Financeiro (Planejar). Isso passa por:
- formação de um grupo com autoridade para decidir sobre aspectos coletivos;
- abertura de CNPJ;
- definição de estatuto com as principais regras e normas da comissão;
- criação de comissão de fiscalização e monitoramento dos atos do representante, que deverão prestar contas de forma recorrente e sempre que for solicitado;
- abertura de conta corrente com “títulares não solidários, que exigirá que as movimentações tenham anuência de todos os titulares da conta corrente, obedecendo ao estatuto’.
O advogado João Pedro Martinez Pinheiro adiciona outro elemento para a boa governança dos recursos. “Quem transfere a alguém poderes para administrar bens deve cercar-se de cuidados. O primeiro cuidado e talvez o mais intuitivo é confiar no representante. E não custa realizar algumas buscas simples de seu nome nos sites de alguns tribunais”. Se houver dúvida ou insegurança antes de assinar contratos, é sempre recomendável buscar aconselhamento jurídico.
5) Investir para ter lucro? Decisão arriscada
Se é possível investir o dinheiro da turma, a busca por uma grande margem de lucro é uma decisão arriscada. “A finalidade dos investimentos deve ser a proteção da inflação e não buscar ganhos expressivos”, orienta Pretti.
E como decidir onde investir? Antes de mais nada, em bancos e corretoras reconhecidas pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e pelo Banco Central, lembra Martinez Pinheiro.
Outro cuidados é alocar em investimentos que tenham vencimentos próximos, já que há pagamentos recorrentes a fornecedores que precisam ser realizados para a festa sair do papel. “As LCAs e LCIs têm tempo de 90 dias de bloqueio. Se houver liquidez no caixa da festa suficiente para transpor, essa pode ser uma opção já que é isenta imposto de renda. Fundos de investimento pós fixados (CDI) e CDBs também são alternativas pela liquidez e baixo risco de crédito”, avalia Pretti.
Como a finalidade é proteção da inflação e garantir algum ganho, CDBs, LCIs e LCAs possuem menos risco de crédito, uma vez que contam com garantia do Fundo Garantidor de Créditos (FGC), no caso de quebra da instituição financeira, para aplicações de até R$ 250 mil, são alternativas recomendadas pelo planejador.
Fonte: Valor