Dois fatos recentes chamam a atenção para um problema antigo que, infelizmente, permanece atual: o abuso sexual infantil. Durante uma audiência no Senado dos Estados Unidos, no final de janeiro, Mark Zuckerberg, da Meta, pediu perdão às famílias de crianças afetadas por conteúdos de exploração sexual infantil disponibilizados nas redes sociais. No Brasil, a Safernet divulgou, no início deste mês, um trágico recorde: 71.867 denúncias de imagens de abuso e exploração sexual infantil on-line, em 2023. O número é 77,13% superior ao de 2022 e recorde absoluto nos últimos 18 anos de funcionamento da Central Nacional de Denúncias de Crimes Cibernéticos.
Tanto uma notícia quanto a outra dão a dimensão do impacto crescente do abuso sexual infantil na sociedade. Perversa, a violência está em todas as classes sociais e em todos os lugares, de grandes centros a pequenas comunidades: 61,4% das vítimas de estupro no Brasil têm até 13 anos (10,4% têm menos de 4 anos) e cerca de 70% dos agressores são conhecidos das vítimas, segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2023.
Apesar do tamanho do problema, ainda é um desafio fazer com que as pessoas abordem esse tema, reconhece Luciana Temer, diretora presidente do Instituto Liberta, ONG que trabalha pelo fim de todas as violências sexuais contra crianças e adolescentes por meio da comunicação e conscientização.
Em entrevista a esta coluna, Luciana diz que sua meta é fazer o Brasil falar sobre o assunto. Pode parecer pouco, mas não é. Essa é uma violência até hoje invisível, silenciada.
Pesquisa do Datafolha, em parceria com o Instituto Liberta, divulgada em 2022, mostrou que um em cada três brasileiros diz ter sido vítima de agressão sexual física ou verbal na infância ou na adolescência. Um terço deles admitiu que sofreu agressões de ordem sexual quando tinha menos de 18 anos, mas apenas 11% denunciaram e 26% tiveram coragem de contar para alguém.
A própria Luciana demorou para se reconhecer como vítima de abuso sexual infantil. A “ficha” só caiu há alguns anos. “Quando peguei o Código Penal e comecei a traduzir todas as situações que a lei prevê como estupro, eu me lembrei de uma situação que aconteceu quando tinha 12, 13 anos, e estava voltando da escola para casa”, conta. Luciana passou na frente de um carro com capô aberto e lembra de ter visto um homem se masturbando. Na hora, saiu correndo. Ao chegar em casa, ouviu que não havia acontecido nada. Depois disso, no entanto, demorou muito tempo para voltar a fazer o trajeto a pé. “Qualquer violência é séria. Ou somos uma sociedade que vai levar tudo isso a sério ou vamos ser condescendentes”, diz.
Para a especialista, só a informação protege as crianças da violência sexual. “Quando a gente não fala de uma questão, é como se ela não existisse”, diz. Segundo ela, boa parte desses crimes poderia não acontecer se as crianças e adolescentes fossem informados e educados sobre esse tema, especialmente na escola. “Mais de 70% dos crimes acontecem dentro de casa, 44,4% deles por pais e padrastos. Portanto, não dá para contar só com a casa para ser esse espaço de informação”, justifica.
Apesar de a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) em seu artigo 12 já prever que o currículo das escolas falem, de forma transversal, de todos os tipos de violências, o abuso sexual infantil não costuma ser discutido em sala de aula. “As pessoas falam de bullying, racismo, homofobia, mas não de violência sexual”, afirma a especialista, que defende a obrigatoriedade de as escolas começarem a falar sobre isso desde a Educação Infantil, com materiais construídos especialmente para esse público.
O próprio Instituto Liberta vem trabalhando na construção de uma grande cartilha de boas práticas da pré-escola até o Ensino Médio. “Crianças informadas ou não informadas correm risco de violência, mas hoje eu tenho a convicção de que as que têm informação têm menos chance de sofrer violência”, diz.
Mesmo o básico não costuma ser ensinado nas escolas. “Quando se fala sobre as partes do corpo, por exemplo, o órgão genital é a ‘pepeca’, o ‘moranguinho’, a ‘borboleta’. É o que não pode ser dito”, lamenta a especialista, que lembra o caso de uma menina de uns 5 anos que reclamou para a professora que o pai adorava “lamber o moranguinho”. A professora demorou para entender e tomar providências, pois não associou de primeira o “moranguinho” com o órgão genital.
Desde que virou a voz que representa o Instituto Liberta e, de certa forma, a causa, Luciana diz que homens e mulheres costumam abordá-la para desabafar sobre os abusos que sofreram quando crianças. “Recebemos depoimentos de pessoas que estão há um ano em terapia e não conseguem falar do abuso com o terapeuta, mas escrevem para o nosso Instagram”, conta, afirmando que durante a campanha de 2022, que convidava pessoas adultas a não terem vergonha de reconhecerem que foram vítimas, “chorava dia sim e o outro também” com as histórias.
Na visão da especialista, o aumento dos números de violência impressiona, mas também pode ser visto como uma “notícia boa” – prova de que o tema, finalmente, está saindo da invisibilidade.
Fonte: VEJA