Não há como ser diferente: quem tem como missão garantir a lei e a ordem em uma sociedade marcada pela violência convive diariamente com altas doses de estresse. Em teoria, policiais recebem treinamentos adequados para lidar com situações de risco e contam com apoio médico e psicológico se, de uma hora para outra, a farda se transformar em um pesado fardo.
Na prática, contudo, o que se observa é que os profissionais das forças de segurança têm encontrado dentro de si um inimigo maior do que os criminosos que combatem nas ruas. Pela primeira vez na história, as mortes decorrentes de suicídios superam a soma dos óbitos causados por confronto — tanto em serviço quanto nos períodos de folga. Até pouco tempo atrás, o problema era trancafiado a sete chaves nas delegacias e batalhões, mas, diante da gravidade do quadro, as corporações começam a tomar providências.
Elas são necessárias e urgentes. Dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública apontam que 110 policiais militares e civis da ativa tiraram a própria vida em 2023, enquanto 107 morreram em combate — 46 casos no decorrer do trabalho e 61 durante os “bicos”. Em relação a 2022, a taxa de suicídios cresceu 26,2%. Acre, Amapá, Ceará, Mato Grosso e os estados das regiões Sul e Sudeste são os que mais preocupam. Donos dos maiores efetivos da Polícia Militar, São Paulo e Rio de Janeiro registraram aumento de 80% e 116%, respectivamente. Em 2023, os dois estados não notificaram suicídios de policiais civis. Nesse caso, segundo os especialistas, os números refletem a intensificação dos combates às facções criminosas. “A gente vive uma realidade de violência endêmica, sem se importar com o policial que vive um confronto permanente”, aponta a desembargadora Ivana David, do TJ-SP, especialista em direito criminal. “Já presidi audiência em que um policial que patrulhava a Cracolândia dizia ficar doente, sentindo-se no limite entre o bem e o mal”, completa.
Não são raros os casos que acarretam depressão profunda. A idealização do perfil do super-herói, que impera na formação desde a academia, contribui para intensificar o problema, já que pedir socorro aos superiores, colegas e psicólogos é visto como sinal de fraqueza. “No meio militar, o suicídio é um tabu maior do que o visto na sociedade”, afirma Juliana Martins, psicóloga e coordenadora do Fórum. “O aumento de casos mostra que estamos falhando em proteger o policial”.
O segundo-sargento da PM do Rio, Ricardo Azevedo da Silva, ganhou a admiração de colegas ao resgatar duas crianças de uma van escolar sequestrada sem disparar um tiro sequer, mas sua coragem escondia, na verdade, tendências suicidas. “Ele era visto como maluco, colocava a vida em risco em vão. Isso devia servir de alerta para o comando”, lamenta o irmão do agente. Apesar de dar diversos sinais de instabilidade emocional, Silva seguiu na ativa e armado até que matou a companheira, e só não se suicidou porque foi convencido pelo filho a se entregar. Preso, tentou tirar a vida dentro do hospital. Hoje, segue detido na unidade psiquiátrica do complexo de Bangu.
Quem está na base da hierarquia militar sofre ainda com humilhações dos superiores. Dados do Centro de Atenção Psicossocial apontam que os cabos e soldados são, disparados, os que mais abreviam a vida. No mês passado, um soldado de São Paulo ameaçou se matar durante uma transmissão ao vivo no Instagram, feita a partir de uma base militar. Não levou a cabo a tentativa, mas acabou sendo ridicularizado por um capitão em postagens e nos stories. Dívidas, abuso de álcool e o acesso facilitado às drogas são combustíveis explosivos que potencializam uma rotina cansativa marcada por longas jornadas oficiais e “bicos” como segurança nas horas de folga. “Se o policial pede afastamento, a arma fica acautelada, e ele não tem mais como complementar a renda”, esclarece Márcia Cordeiro, presidente da Associação Representativa de Policiais e Bombeiros Militares do Rio.
Por mais que pareça contraditório, a falta de adrenalina também funciona como fator de risco. Acostumado a uma rotina “ligada nos 220”, o marido de Ana (nome fictício) ficou deprimido ao ir para a reserva – enforcou-se com uma corda, em casa. “Ele era apaixonado pela farda e se arrependia de ter se aposentado”, conta a esposa, revelando que o PM evitava ser identificado e entrou em pânico meses antes de sua morte, quando presenciou um arrastão. O alerta sobre a categoria levou a Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp) a lançar neste ano o Escuta SUSP, com atendimento psicológico on-line para agentes de segurança, em parceria com universidades federais. “Há um diálogo com os comandos para que incentivem os policiais a se apresentarem”, diz Mario Sarrubbo, à frente da Senasp. “O tratamento diminui afastamentos e transforma as instituições em ambientes mais saudáveis”, aposta.
Especialistas são unânimes em alertar que, sem o apoio de superiores, a tropa tende a seguir evitando o assunto, mesmo diante de sofrimento intenso. “O comandante tem que estar com o coração e a porta abertos para o policial”, diz a tenente-coronel Claudia Moraes, cientista social e porta-voz da PM fluminense. A gravidade do tema exige ações urgentes. Afinal, um policial armado sem dispor de plenas condições psicológicas não coloca em risco apenas a própria vida.
Fonte: VEJA