As vidraças, a mobília, os equipamentos de trabalho e os objetos de arte das sedes dos três poderes da República foram restaurados ou repostos (a um custo milionário) após o quebra-quebra provocado pela turba que tomou conta de Brasília em 8 de janeiro de 2023. Os sinais, no entanto, são de que os reflexos da insanidade golpista irão se estender por muito tempo. Em dezembro, por exemplo, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva decidiu não incluir os condenados pelos ataques no indulto de Natal. No mesmo mês, um empresário de Londrina, no Paraná, tornou-se o primeiro denunciado pela Procuradoria-Geral da República por financiar a horda antidemocrática. Os dois atos indicam não só que a batalha iniciada naquele triste domingo está longe do fim, mas que não haverá alívio a quem conspirou contra a democracia.
No curso daquele que é o maior julgamento da história do Brasil, nada menos que 1.406 pessoas foram denunciadas por associação criminosa armada, abolição violenta do estado democrático de direito, golpe de Estado, dano qualificado e deterioração do patrimônio tombado. Trinta já foram condenadas, algumas a dezessete anos de cadeia. Um contingente de 1.121 acusados aguarda a possibilidade de fazer um acordo de não persecução penal — em troca de terem seus processos suspensos, ficariam proibidos de interagir em redes sociais e teriam que usar tornozeleira eletrônica. Um ano depois, 66 pessoas ainda estão atrás das grades em presídios da capital.
O repúdio generalizado à barbárie, até por parte da oposição mais civilizada, permitiu uma firme reação das instituições e assegurou o avanço das investigações e o julgamento dos envolvidos. Sob a guarda de Alexandre de Moraes, o caso avança com rapidez no STF. O ministro segue atuando com o rigor necessário diante do ocorrido, a despeito de algumas críticas de que a celeridade das ações penais estaria prejudicando a ampla defesa. A tramitação dos processos diretamente no Supremo, última instância do Judiciário, também engrossou a polêmica por minar as possibilidades de recurso, assim como as prisões preventivas, que muitos veem como desnecessárias ou ilegais. Grande parte dessas reclamações, diga-se, parte de setores ligados ao bolsonarismo. “Criou-se um clima de abuso de autoridade, um regime de exceção”, diz o deputado Marco Feliciano (PL-SP), apoiador do ex-presidente.
Na verdade, ao contrário do que defendem políticos como Feliciano, a tentativa de criar um regime de exceção partiu justamente dos que afrontaram as instituições no 8 de Janeiro, o que justifica plenamente o peso da espada da Justiça utilizado no caso pelo STF. “As pessoas ali sabiam o que estavam fazendo, não estamos falando de inocentes”, diz Pedro Serrano, doutor em direito do estado pela PUC-SP e um dos redatores de projeto que em 2021 impôs novas regras para terrorismo e permitiu colocar no banco dos réus quem atenta contra a democracia — por ironia, sancionado por Bolsonaro. Com o 8 de Janeiro, foi a primeira vez que o Brasil puniu um crime de golpe de Estado — nem os responsáveis pela ditadura militar (1964-85) tiveram o mesmo destino.
A reação firme das instituições, de fato, era a única resposta possível à gravidade do ocorrido em 8 de janeiro. Para o subprocurador-geral da República, Carlos Frederico dos Santos, responsável pelas acusações, a resposta dada pelo sistema de Justiça serve para mostrar que episódios desse tipo não podem ser tolerados. “Nesse aspecto, a função pedagógica está sendo cumprida”, afirma. De acordo com ele, os casos seguem o rito processual convencional, com audiências de custódia, de instrução e alegações finais. A própria PGR pediu a liberdade de mais de 700 acusados. Para a cientista política e professora da UFRJ Mayra Goulart, uma parte do estranhamento se deve ao fato de que a punição recaiu sobre pessoas “que não costumam sentir o braço punitivo do Estado”, numa referência à grande quantidade de pessoas de classe média envolvidas nos tumultos. “A herança desse episódio é: quais são os limites de uma linguagem crítica, antipolítica, que se oponha ao Estado Democrático de Direito?”, afirma.
Os desdobramentos judiciais não alcançaram ainda alguns envolvidos, já que dois braços da investigação estão em andamento. Um é o inquérito que apura os financiadores dos atos e que levou à denúncia contra o empresário Pedro Luis Kurunczi, de Londrina, acusado de usar 59.000 reais para levar quatro ônibus, com 108 pessoas, para Brasília. Outra frente é a que investiga políticos e integrantes de governos e que tramita sob sigilo. Nenhuma autoridade foi denunciada até agora, nem o ex-ministro da Justiça Anderson Torres, que era secretário de Segurança do DF na época dos ataques e ficou preso por 117 dias. O general Gonçalves Dias, o GDias, que chefiava o Gabinete de Segurança Institucional (GSI) e apareceu conversando com invasores do Planalto, chegou a ter o indiciamento pedido por uma CPI da Câmara Distrital do DF, mas foi poupado pela CPMI do Senado, onde foi alvo de radicais.
Mesmo sem punições até agora, o quebra-quebra golpista já deixou muitos estilhaços na política. O bolsonarismo, por exemplo, foi duramente atingido. O episódio, repudiado até mesmo por pessoas que estiveram ao lado de Bolsonaro na eleição de 2022, como o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), colocou o ex-presidente politicamente na defensiva. E judicialmente pode lhe trazer complicações. Em dezembro, a PGR recuperou e enviou ao STF um vídeo que ele havia postado e apagado em janeiro no qual compartilhava a tese de que a vitória de Lula havia sido fraudada — a publicação foi anexada ao inquérito que apura se ele incitou a barbárie antidemocrática. Além disso, em outubro, o relatório final da CPMI do Senado pediu o indiciamento de Bolsonaro e mais de 60 pessoas, entre militares, ex-ministros e empresários — os pedidos aguardam a análise da PGR. “Esse foi o segundo erro dos radicais. Primeiro tentaram dar um golpe, depois incentivaram a instalação de uma CPMI que os colocou no centro das investigações”, lembra o cientista político Cláudio Couto, da FGV. No final de novembro, o bolsonarismo levou a sua versão sobre o 8 de Janeiro para a Avenida Paulista, onde fez um protesto contra a morte do empresário Cleriston Pereira da Cunha, na Papuda, que aguardava julgamento.
Já para Lula, o episódio tumultuou o início do seu governo, mas teve um lado positivo. Nos dias que se seguiram à intentona golpista, o presidente conseguiu reunir apoio político dos chefes dos poderes e dos governadores de todos os estados, incluindo adversários eleitorais. “O 8 de Janeiro serviu para fazer Supremo, Congresso e Executivo entenderem que tinham de criar um denominador comum se quisessem extirpar os radicais autoritários do jogo político”, diz Felipe Nunes, diretor do instituto de pesquisas Quaest e professor do Departamento de Ciência Política da UFMG. A depredação de prédios públicos contribuiu também para o discurso de Lula como fiador da democracia e ajudou o petista a construir pontes com aliados do ex-presidente no Congresso, como o próprio Lira e o Centrão. “O que aconteceu foi um episódio grotesco e lamentável para o país e que ainda deixou a oposição mais fragilizada”, reconhece o presidente do Republicanos, deputado Marcos Pereira (SP).
Fonte: VEJA