A aprovação, na Câmara dos Deputados, do Projeto de Lei (PL) 709/2023, que impede invasores de terras de ter acesso a benefícios do governo, pode esvaziar o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).
A proposta ainda precisa passar pelo Senado, mas o texto aprovado pelos deputados prevê que pessoas “efetivamente identificadas” pela polícia em invasões de terra não poderão participar do programa nacional de reforma agrária ou permanecer nele se já estiverem cadastrados, perdendo o lote que ocuparem.
O PL 709/2023 diz ainda que os invasores de terra perderão o direito de receber benefícios ou incentivos fiscais (como créditos rurais), não poderão se inscrever em concursos públicos ou mesmo ser nomeados em cargos comissionados, e também deixarão de ter acesso a auxílios, benefícios e demais programas do governo federal por oito anos. O programa Bolsa Família também será cortado, mas voltará a ser pago quando a pessoa sair da propriedade invadida.
Embora não haja menção direta ao MST no projeto de lei, o movimento é responsável por diversas invasões de terra registradas no país, tendo historicamente feito ocupações para pressionar pela reforma agrária. Somente em abril de 2024, durante o “Abril Vermelho”, o MST contabilizou 30 invasões de terras públicas e privadas. Se virar lei, a proposta pode acabar inibindo a participação no movimento agrário, especialmente nas ações de ocupação.
“Começo do fim do MST”, comemorou o deputado Ricardo Salles (PL-SP), após a aprovação do projeto na Câmara. A mobilização da bancada do agro fez com que ele passasse com 336 votos a favor e 120 contra.
Ao justificar a proposta, o autor do texto principal, deputado Marcos Pollon (PL-MS), afirmou que “o Estado não pode se prestar ao papel de financiador do bem-estar de delinquentes”. “Trata-se de um ultraje ao Estado Democrático de Direito permitir que agentes criminosos se beneficiem de programas assistenciais financiados pela população de bem”, disse.
As punições previstas para quem for identificado em invasões de terra se estendem para quem invadir prédios públicos ou participar de atos de ameaça, sequestros ou de quaisquer outros atos de violência relacionados a conflitos agrários ou fundiários.
Outro ponto do texto aprovado na Câmara prevê que pessoas jurídicas envolvidas, direta ou indiretamente, em invasões de terra ficam proibidas de fazer contrato com o poder público em nível federal, estadual e municipal.
Em nota, o MST disse que o projeto é uma tentativa de criminalização do movimento. “Este PL (projeto de lei) é mais uma tentativa da extrema-direita de criminalizar a luta de indígenas, quilombolas, camponeses e de diversas organizações populares que buscam uma justa, necessária e urgente democratização da terra”, disse o movimento agrário.
A proposta, no entanto, não pune os integrantes do movimento de forma geral. Se não houver registro de participação em invasões, os sem-terra ou os beneficiários do Programa Nacional de Reforma Agrária não serão punidos apenas por fazerem parte do MST.
Punições podem respingar em empresas
O projeto original de Pollon previa apenas a retirada de benefícios para os invasores, mas uma emenda apresentada pelo deputado Evair Vieira de Mello (PP-ES), acolhida pelo relator da proposta e presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), deputado Pedro Lupion (PP-PR), ampliou o escopo.
Ele incluiu a punição a pessoas jurídicas que estejam envolvidas em invasões. A proposta prevê que empresas, associações ou cooperativas ligadas a invasões de terra não poderão mais ter acesso a recursos ou a benefícios dos governos federal, estadual ou municipal.
Isso impacta desde o acesso ao crédito rural e demais benefícios previstos no Plano Safra até contratações diretas ou convênios para realização de eventos ou capacitações direcionadas aos seus integrantes.
Um exemplo: se for comprovado envolvimento de uma cooperativa em uma invasão de terra, ela não poderá mais vender seus produtos para programas do governo, como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA).
Para o consultor jurídico da Federação de Agricultura do Rio Grande do Sul (Farsul), Frederico Buss, a proposta abrange amplas restrições aos envolvidos em invasões de terra e implica sobre toda a cadeia.
“Em qualquer recurso que venha de um programa governamental deve haver essa restrição. O texto foi pensado para resguardar o cumprimento da lei e da ordem não só para a preservação da propriedade privada, mas do Estado Democrático de Direito”, disse Buss.
O consultor jurídico disse ainda que as invasões envolvem uma logística grande, que pode ser sufocada com a proposta. “Uma invasão envolve desde o transporte das pessoas até o acampamento e a alimentação delas nos locais invadidos, por exemplo. Nesse contexto, cooperativas ligadas ao MST podem ter envolvimento com as invasões e ser punidas por isso quando a lei estiver em vigor”, disse Buss ao mencionar que até mesmo doações feitas aos invasores podem ser enquadradas na proposta.
Apesar das alterações aprovadas, Lupion rejeitou a inclusão de emendas que tratavam do processo de reintegração de posse. “Estas medidas já estão sendo tratadas em uma série de projetos em tramitação, em especial no PL 8.262, de 2017”, pontuou o relator ao se referir ao “Pacote Invasão Zero”, criado após a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do MST.
Governistas questionam constitucionalidade do PL
Durante os debates sobre a proposta, deputados da base do governo questionaram a constitucionalidade do texto e afirmaram que a ampliação do escopo das punições é um “exagero”.
O deputado Patrus Ananias (PT-MG) disse que o projeto “afronta princípios constitucionais e o ordenamento jurídico, acrescentando penas inaceitáveis às pessoas condenadas nesses casos”. “Com a aprovação da proposta, as condenações atingiriam também os familiares do condenado”, disse o parlamentar.
Para o deputado Lindbergh Farias (PT-RJ), punir o invasor de prédio público é um “exagero” de um projeto sem razoabilidade. “Isso esteve no movimento estudantil também: a ocupação de uma reitoria”, afirmou.
Já para a deputada Adriana Ventura (Novo-SP), a manifestação não pode ser equiparada à invasão. “Manifestação pacífica dentro dos limites estabelecidos está tudo certo. Quando a gente começa a ver invasão, não autorizada, essa pessoa precisa ser punida”, disse, ao citar a invasão de alunos a áreas restritas a deputados na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp) durante recente votação de proposta para implementar escolas cívico-militares na rede estadual e municipal de ensino.
Debate segue para o Senado e pode acabar no STF
Embora ainda não tenha sido discutido no Senado, a expectativa nos bastidores da Casa em relação ao projeto que tenta coibir invasões de terra é de que a sua aprovação em plenário será tranquila, embora dependa da disposição do presidente da Casa, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), em agendar a votação.
Segundo assessores e analistas, trata-se de uma matéria que consegue unir os votos de toda a oposição com os dos partidos de centro, que mantêm uma aliança pragmática com o governo do PT.
Portanto, o andamento dependerá do empenho e da pressão dos mais interessados, bem como de acordos envolvendo outros projetos, para que o projeto seja aprovado sem mudanças, permitindo que seja apreciado pelo presidente.
“A iniciativa é uma resposta necessária ao número crescente de invasões. Precisamos mostrar que haverá consequências imediatas e que o Brasil não é uma terra sem lei. O PL tem meu apoio e tenha certeza de que trabalharei pela sua aprovação”, disse o senador Irineu Orth (PP-RS) para a Gazeta do Povo.
Após a análise do Senado, a proposta terá que ser enviada para o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Diante das manifestações de deputados da esquerda e do ministro do Desenvolvimento Agrário, Paulo Teixeira, a indicação é que o petista vete, ao menos parcialmente, o texto.
Se os vetos forem confirmados, a matéria retornará ao Congresso. Em caso de derrubada dos vetos, a esquerda e o governo também já sinalizaram a intenção de judicializar o tema, questionando a constitucionalidade da proposta no Supremo Tribunal Federal (STF).
Enquanto isso, o MST promete que continuará pressionando para travar a proposta.
“As ocupações seguirão sendo uma forma de cobrar o preceito constitucional quanto ao cumprimento da função social da terra. Contaremos com o apoio de toda a sociedade e de parlamentares defensores da luta pela terra para barrarmos este projeto”, disse o MST em nota.
Fonte: Gazeta do Povo