Trinta dias após assumir pela primeira vez a cadeira de presidente da República, no início de 2003, Luiz Inácio Lula da Silva lançou aquela que pretendia transformar em uma das marcas de seu governo: o Fome Zero, iniciativa que, como o nome indicava, pretendia acabar com o flagelo que atingia à época 14 milhões de brasileiros. A ação serviu de base para o lançamento no ano seguinte de um programa ampliado, a que deu o nome de Bolsa Família. Vinte anos depois, no entanto, o modelo de transferência de renda, considerado o maior do mundo em número de beneficiados, não conseguiu atingir o objetivo anunciado pelo petista em sua estreia no cargo. Relatório divulgado pela Organização das Nações Unidas (ONU) há pouco mais de uma semana mostra que 8,4 milhões de brasileiros ainda passam fome no país, o mesmo número que Lula havia deixado ao terminar o segundo mandato presidencial, em 2010.
O flagelo social persiste a despeito do gigantismo que adquiriu o Bolsa Família ao longo dos anos. O programa atinge hoje 20,8 milhões de famílias, mais que o dobro de seu alcance em 2004. Além disso, o valor médio pago a cada beneficiado foi multiplicado por dez no período (de 66 reais para 682 reais), sendo que o grande salto ocorreu durante a pandemia, quando o presidente era Jair Bolsonaro. De volta ao poder para um terceiro mandato, Lula reservou no Orçamento deste ano 168 bilhões de reais ao programa, um recorde, cujo valor se aproxima do destinado ao Ministério da Educação.
Embora não tenha conseguido o objetivo inicial que o inspirou, há muitos méritos no Bolsa Família. Entre os principais avanços está a redução da miséria — só entre 2019 e 2023, o número de pessoas abaixo da linha da pobreza (renda per capita mensal de até 218 reais) caiu de 15,4 milhões para 9,5 milhões, segundo estudo da FGV/Ibre. Outro trabalho, da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal (FMCSV), mostra que, com o programa, o percentual de crianças na primeira infância que vivem em famílias extremamente pobres cai de 91,7% para 6,7%. Há ainda estudos que atestam impactos positivos na frequência escolar — especialmente de meninas —, queda da mortalidade infantil, redução das desigualdades regionais e um efeito multiplicador para o Produto Interno Bruto (PIB).
O sucesso do modelo de transferência de renda fez dele uma unanimidade política. Iniciada a partir do Bolsa Escola e do Comunidade Solidária, ambos do governo FHC, a destinação de dinheiro para famílias pobres ajudou a construir a imagem de Lula. Como Bolsa Família, deu a ele uma popularidade recorde no Nordeste, historicamente a área mais pobre do país, o que permitiu a ele construir uma fortaleza política na região. Também ajudou a girar a economia do país e fez com que Lula terminasse seus dois primeiros mandatos com quase 90% de aprovação. Sabendo disso, Bolsonaro, que rezava pela cartilha da menor participação do Estado na vida das pessoas, não acabou com o programa — apenas mudou o nome, para não dar tração à marca associada aos governos petistas. Veio a pandemia e Bolsonaro, como não podia deixar de fazer, vitaminou o negócio, que teve um gigantesco salto orçamentário. Em 2020, no auge da crise sanitária, o desembolso foi a 360 bilhões de reais.
Os méritos, no entanto, não podem esconder as graves falhas. Uma auditoria do Tribunal de Contas da União (TCU) apontou que 4,7 milhões de famílias receberam dinheiro indevidamente do Bolsa Família em 2023 e deram um prejuízo de 34,2 bilhões de reais. Cerca de 40% possuíam renda maior que a declarada no cadastro. “Tinha gente com renda mensal de dez salários mínimos recebendo”, admite Wellington Dias, ministro do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome, em entrevista a VEJA. Enquanto isso, 700.000 famílias estão na fila, à espera de um lugar no programa, mas fica difícil para o governo incluir os novos necessitados, uma vez que tem estourado o teto mensal de gastos de 14 bilhões de reais. Também é preocupante que uma das principais condicionalidades previstas, a da frequência escolar, tenha se transformado em um dos gargalos: um em cada quatro beneficiários em idade escolar não frequenta a sala de aula.
O problema mais grave, no entanto, talvez seja a falta de perspectiva de longo prazo. Um estudo do Instituto de Mobilidade e Desenvolvimento Social (IMDS) concluiu que 20,4% dos dependentes de 7 a 16 anos de idade que estavam no Bolsa Família em 2005 (2,3 milhões de pessoas) ainda estão no programa — ou seja, em 20 anos não encontraram a chamada porta de saída. “Não tem uma estratégia para que um dia o Brasil não precise mais de Bolsa Família. Impregnou-se no país a ideia de que esse é um programa permanente”, avalia Cristovam Buarque, criador do Bolsa Escola e ex-ministro da Educação no primeiro mandato de Lula. “O que falta é avançar da conjuntura para a estrutura, da solução circunstancial para uma solução estrutural”, acrescenta. Para ele, a solução gira em torno do acesso à educação de qualidade.
Outro ponto importante para abrir a porta de saída é criar um ambiente mais desenvolvido para o país. “É preciso ter boas condições macroeconômicas, uma inflação moderada, um governo que seja responsável fiscalmente e que trabalhe muito a geração de empregos através de atração de investimentos”, diz Écio Costa, professor de economia da Universidade Federal de Pernambuco. “As políticas públicas precisam ser mais bem trabalhadas e aprimoradas para acelerar esse ritmo de redução da pobreza”, completa. Um exemplo de como as condições estruturais influenciam no combate à fome é a inflação. “Desde a pandemia, o preço dos alimentos aumentou bem mais do que a média geral. E isso é um fator importante na questão da fome no país”, afirma Daniel Duque, pesquisador da área de economia aplicada da FGV/Ibre.
Os programas de transferência de renda não são uma exclusividade brasileira. Com muitas variações, eles existem até em países desenvolvidos, como França e Canadá. Um exemplo que pode servir ao Brasil é o mexicano, que nasceu como Oportunidades, em 2001, três anos antes do Bolsa Família. A partir de 2014, passou a se chamar Prospera e incluiu o acesso a linhas de microcrédito, a cursos profissionalizantes e a vagas no ensino superior. É a primeira política pública dessa magnitude no mundo — e os números mostram que tem colhido bons frutos. O relatório da ONU diz que no México há 3,9 milhões em situação de fome, ou 3,1% da população, 1 ponto percentual a menos que em 2006. O número ainda é dramático, mas está em queda e é menor que o do Brasil.
Em outros países, investe-se muito em programas de renda mínima. Com essa modalidade, é possível garantir que cada cidadão tenha ao menos um piso de renda digno, que permita a ele não enfrentar situações de fome. A Finlândia, paradigma em índices de desenvolvimento humano, experimentou um programa de renda básica de 2017 a 2019, pagando 560 euros a 2.000 desempregados. Ao final da experiência, boa parte permaneceu desempregada e relatou mais benefícios à saúde física e mental do que à vida financeira. O salário médio lá é de 3.500 euros. “Esses países têm um custo de vida muito elevado. Então, mesmo que as pessoas tenham renda alta, isso não significa qualidade de vida”, explica Leandro Ferreira, presidente da Rede Brasileira de Renda Básica.
A dificuldade brasileira para acabar com a fome não tem a ver com dinheiro. Os países ricos destinam em média 1,5% do PIB para programas sociais, bem mais que os 0,5% reservado ao Bolsa Família. Mas o Brasil tem uma miríade de programas sociais, como o Benefício de Prestação Continuada (BPC), que destinará 111 bilhões de reais neste ano a idosos com renda de até um quarto do salário mínimo e a pessoas com deficiência que não têm Previdência, além do Seguro Defeso para pescadores e do Auxílio Gás, entre outros. “Quando se somam todos esses apoios, temos uma rede que soma 350 bilhões de reais por ano. É uma rede robusta”, afirma Wellington Dias. Essa estrutura toda, além de outros investimentos sociais, elevam os gastos totais a 2% do PIB.
O governo diz estar atento à necessidade de criar condições para que as pessoas saiam da situação de emergência e possam deixar a rede de socorro do Bolsa Família. Wellington Dias cita programas que a gestão recuperou ou criou e que funcionam no mesmo universo de promoção humana, como Farmácia Popular, Minha Casa, Minha Vida, Pé de Meia e ações de requalificação profissional e de aquisição de alimentos de pequenos produtores. “Não chamamos de ‘porta de saída’, mas de inclusão socioeconômica”, diz. A gestão voltou também a priorizar o combate à miséria ao lançar a iniciativa Brasil sem Fome, cujo nome remete ao Fome Zero, para articular mais de oitenta programas e ações intersetoriais em 24 ministérios, que teriam sido desvirtuados, esvaziados ou interrompidos em gestões anteriores. A ideia é aproveitar a barafunda de ações sociais para, de forma integrada, atingir o objetivo anunciado no já longínquo 2003, quando Lula lançou o Fome Zero em Guaribas (PI) — 20 anos depois, a cidade continua sendo uma das mais pobres do país. Tanto tempo e tanto dinheiro depois, é inadmissível que ainda haja no Brasil cidadãos que não têm o que comer.
Fonte: VEJA