O Itamaraty anunciou na ONU que está disposto a receber membros da oposição da Nicarágua que tenham sido alvo da decisão do governo de Daniel Ortega de retirar suas nacionalidades. Mas evitou chancelar a ideia de que houve crime contra a humanidade, como indicou o informe dos peritos da ONU. A aposta do governo brasileiro é por buscar uma saída negociada para a crise.
Em fevereiro de 2023, as autoridades nicaraguenses privaram 222 indivíduos de sua nacionalidade e os expulsaram do país, acusando-os de serem “traidores da pátria”. No mesmo mês, o Tribunal de Apelações de Manágua declarou outras 94 pessoas residentes na Nicarágua e no exterior como “traidores da pátria” e decidiu impor a perda da nacionalidade e ordenar o confisco de seus bens em favor do Estado.
Em um discurso nesta terça-feira em Genebra, a delegação brasileira afirmou que o governo “recebeu com extrema preocupação a decisão das autoridades nicaraguenses de determinar a perda da nacionalidade de mais de trezentos cidadãos nicaraguenses”.
“Reafirmando seu compromisso humanitário com a proteção dos apátridas e com a redução da apatridia, o governo brasileiro se coloca à disposição para acolher as pessoas afetadas por esta decisão, nos termos do estatuto especial previsto na Lei de Migração brasileira”, anunciou o embaixador do Brasil na ONU, Tovar da Silva Nunes.
Outros governos da região já tinham se oferecida para receber os membros da oposição.
No Conselho de Direitos Humanos da ONU, o Brasil ainda afirmou que está “preocupado” com as violações de direitos humanos na Nicarágua. Mas o governo de Luiz Inácio Lula da Silva evitou citar nominalmente o presidente Daniel Ortega, apesar das denúncias da ONU de que seu regime cometeu crimes contra a humanidade.
Em seu discurso, o Brasil sequer fez referência à conclusão dos peritos internacionais e nem sinalizou o apoio para que a investigação continue. Os peritos pedem que seu mandato seja ampliado por mais dois anos.
Nos bastidores, o governo brasileiro quer esgotar as possibilidades de diálogo com o Manágua, antes de elevar a pressão. O temor é ainda de que tal postura da parte da comunidade internacional possa aumentar a repressão no país e dificultar qualquer colaboração internacional.
“O governo brasileiro acompanha os acontecimentos na Nicarágua com a máxima atenção e se preocupa com os relatos de graves violações dos direitos humanos e restrições ao espaço democrático naquele país, em particular execuções sumárias, detenções arbitrárias e torturas contra dissidentes políticos”, disse a delegação brasileira.
Mas o tom do governo foi a de buscar o diálogo. “O Brasil está pronto para explorar formas de abordar esta situação de forma construtiva, em diálogo com o governo da Nicarágua e todos os atores relevantes”, disse.
Brasil não se soma a grupos de pressão que denuncia crimes contra humanidade
Nos últimos dias, a comunidade internacional tem criticado a postura do Brasil, que optou por não se somar a um bloco de mais de 50 países que criticaram Ortega pelas violações. Para a surpresa de observadores na ONU, o Brasil tampouco se uniu à declaração de países latino-americanos que encamparam a ideia de apresentar na ONU a ideia de uma investigação internacional contra o regime na Nicarágua.
A reportagem apurou que o Brasil sugeriu um tom mais moderado no texto, mas as propostas do Itamaraty não foram aceitas e o governo Lula optou por não aderir. Com isso, o Brasil se distanciou de governos de esquerda, como o de Gabriel Boric no Chile e Gustavo Petro na Colômbia. Ambos optaram por cobrar de Manágua uma nova postura sobre direitos humanos.
A pressão de ativistas de direitos humanos ainda ficou evidente sobre o Brasil depois que os peritos da ONU concluíram que Ortega é responsável por crimes contra a humanidade, em um relatório apresentado à comunidade internacional nesta semana.
Apelo de ativistas ao presidente Lula
Até agora, a postura do Brasil tinha causado desconforto entre famílias de vítimas e ativistas da Nicarágua. Uma voz que se levantou pedindo ação do Brasil é de Bianca Jagger. Em entrevista exclusiva ao UOL na semana passada, a ativista social e política nascida na Nicarágua fez um apelo para que Lula se pronuncie durante da repressão instaurada no país e defenda a democracia.
Bianca foi casada com Mick Jagger, dos Rolling Stones. Há vários anos ela milita pela democracia em seu país e agora quer uma atitude mais ativa por parte do governo brasileiro. “Quero fazer um chamado ao presidente Lula: que por favor se pronuncie de uma forma clara e contundente em apoio a povo da Nicarágua, aos prisioneiros políticos, como o bispo Rolando José Alvarez”, afirmou.
“Não se esqueçam: nós precisamos do Brasil. O país precisa assumir um papel importantíssimo em relação aos nicaraguenses”, disse a ativista. “Estou confiante de que ele vai fazer isso e quero ir logo ao Brasil”, completou.
Cooperação é ainda possível?
Entre diferentes governos ocidentais, a orientação é de pressionar para que a crise nicaraguense ganhe um outro status dentro da ONU. Até agora, a decisão era de incluir o debate sobre o país dentro dos itens relacionados à cooperação. A meta era de não criar um constrangimento maior sobre Ortega e, portanto, permitir que ele ouvisse as recomendações dos especialistas internacionais em direitos humanos.
Mas nada disso ocorreu e, para muitos países da região latino-americana e para o Grupo Ocidental, está na hora de retirar a Nicarágua do capítulo de cooperação e colocar o país na agenda internacional de violadores de direitos humanos.
Na diplomacia brasileira, porém, a preferência é para que o país continue sendo tratado no capítulo da agenda que lida com a cooperação entre estados e o sistema da ONU.
O que diz a investigação?
Internamente, muitos na ONU não acreditam que exista ainda espaço para um diálogo com Ortega, principalmente depois das conclusões dos peritos. No documento oficial, eles apontam que as decisões para cometer tais crimes vieram do “mais alto escalão”.
“Os supostos abusos – que incluem execuções extrajudiciais, detenções arbitrárias, tortura, privação arbitrária da nacionalidade e do direito de permanecer no próprio país – não são um fenômeno isolado, mas o produto do desmantelamento deliberado das instituições democráticas e da destruição do espaço cívico e democrático”, disse o relatório.
“Estas violações e abusos estão sendo perpetrados de forma generalizada e sistemática por razões políticas, constituindo os crimes contra a humanidade de assassinato, prisão, tortura, incluindo violência sexual, deportação e perseguição por motivos políticos”, disse o especialista independente Jan Simon, que presidiu o inquérito. “A população nicaraguense vive com medo das ações que o próprio governo possa tomar contra eles”.
Segundo Simon, Ortega jamais respondeu a qualquer pedido de informação por parte de sua equipe.
O governo de Nicarágua rejeitou o informe, disse que não vai aceitar a nomeação dos peritos e o documento que é “cortina para aparentar legalidade inexistente”. As autoridades de Ortega ainda apontaram que as denúncias são “falsas” e que seria uma “estratégia das potências” para minar sua “soberania”. “Não temos medo”, disse a delegação centro-americana.
Governo Boric lidera críticas
Diante do informe, governos de todo o mundo tomaram a palavra para condenar os atos no país centro-americano e apoiar as recomendações dos peritos. Num comunicado lido pelo governo de esquerda do Chile, um bloco latino-americano apoiou o documento, o trabalho dos peritos e apontou para o risco de uma crise humanitária ainda maior.
A União Europeia condenou as violações de direitos humanos e os ataques contra a democracia e o estado de direito. Os governos da França, dos países escandinavos, Austrália e de diversas partes do mundo também denunciaram a situação.
Já as autoridades americanas afirmaram estar “preocupadas pela deterioração” da situação e qualificou o comportamento do governo de “deplorável”. Washington ainda pede que Ortega aceite colaborar com a ONU, que permita a restauração da democracia e que aceite observadores internacionais em suas eleições.
O governo da Argentina também afirmou estar preocupado com as conclusões dos peritos e pediu que as autoridades permitam a entrada de equipes internacionais para examinar a situação.
Coreia do Norte, Belarus, Irã, Cuba e Venezuela aplaudem Ortega
Ortega, porém, contou com o apoio de alguns poucos países. Um deles foi o da Coreia do Norte, que insistiu em aplaudir as supostas reformas adotadas pelo regime centro-americano. Já as autoridades de Belarus acusam os peritos de chegar a conclusões equivocadas, enquanto o Irã acusou a comunidade internacional de tentar usar os direitos humanos para atacar o governo da Nicarágua.
O governo de Cuba insistiu que vai continuar a ser contra a investigação contra a resolução que criou a investigação, apontou que “apenas o diálogo” pode ser a solução e que há uma “tentativa de desestabilizar o governo legitimamente eleito”.
O governo da Venezuela criticou o informe da ONU e disse que a pressão não tem “qualquer relação com a preocupação sobre direitos humanos”. Para Caracas, as conclusões e questionamentos violam a soberania da Nicarágua e alerta que tais temas são domésticos.
O governo de Nicolas Maduro ainda insistiu em dar “apoio ao país irmão”, elogiou a realização de eleições e disse que incluir Ortega na agenda da ONU é um “plano orquestrado para justificar sanções, que são os verdadeiros crimes contra a humanidade”.
Lista de violações
Na apuração realizada pelos peritos internacionais, a lista de violações é ampla.”As altas autoridades do governo conseguiram instrumentalizar os Poderes Executivo, Legislativo, Judiciário e Eleitoral para desenvolver e implementar uma estrutura legal destinada a reprimir o exercício das liberdades fundamentais e perseguir pessoas contrárias”, acrescentou? Simon. “O objetivo é eliminar, por diferentes meios, qualquer oposição no país”.
O relatório identificou um padrão de execuções extrajudiciais realizadas por agentes da Polícia Nacional e membros de grupos armados pró-governamentais que agiram de forma conjunta e coordenada durante os protestos ocorridos entre 18 de abril e 23 de setembro de 2018. O governo obstruiu qualquer investigação relativa a estas e outras mortes.
Desde dezembro de 2018, pelo menos 3.144 organizações da sociedade civil foram fechadas, e praticamente todas as organizações independentes de mídia e de direitos humanos operam a partir do exterior.
Fonte: Uol