A Câmara dos Deputados aprovou nesta quinta-feira (4), por 312 votos a 144, o texto-base da proposta de emenda à Constituição (PEC) que autoriza o governo não pagar parte de suas dívidas judiciais (precatórios) e altera o teto de gastos para permitir mais despesas em 2022, ano eleitoral, como o pagamento de R$ 400 para 20 milhões de famílias carentes.
Ainda falta a análise de oito requerimentos da oposição e do Novo para alterar o projeto antes de concluída a votação, os chamados destaques. O líder do PSC, Aluísio Mendes (MA), afirmou após o fim da sessão que a análise dos destaques ficará para a próxima terça-feira.
O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), decidiu adiar a conclusão da PEC dos Precatórios por causa do horário (o texto-base foi aprovado quase às 2h desta quinta-feira) e por questões de quórum – os destaques dos partidos contrários podem levar à rejeição de quase todos os pontos do texto e o governo precisará dos mesmos 308 votos para evitar a desidratação. Ainda será preciso aprovar a PEC em segundo turno, o que pode ficar para a próxima semana. Depois, a matéria irá ao Senado.
O projeto foi viabilizado com acordos de última hora, dissidências dentro da oposição, apoio de partidos que ignoraram seus presidenciáveis e uma “manobra regimental” que permitiu ao relator, deputado Hugo Motta (Republicanos-PB), apresentar uma nova versão do seu parecer em plenário, mesmo que o regimento proibisse a apresentação de novas emendas nessa fase de votação. A oposição prometeu contestar essa decisão no Supremo Tribunal Federal (STF).
Entre os partidos que foram decisivos para aprovação da PEC estão o PSDB (em especial o grupo ligado ao governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite), a fusão entre DEM e PSL e o PDT, todos com pretensões presidenciais. Já o PT e MDB fecharam questão contra a proposta, dizendo que não apoiariam o calote nos precatórios e a desconfiguração do Bolsa Família.
O Podemos, que pretende filiar o ex-juiz Sergio Moro nos próximos dias para lança-lo pré-candidato à Presidência, titubeou: a sigla apoiou a PEC no requerimento de retirada de pauta, votou contra na segunda votação (um requerimento procedimental) e, na hora do mérito, primeiro liberou a bancada e, depois, declarou voto contra, mas o placar mostrou uma sigla dividida. Moro tinha criticado, horas antes, a PEC.
A proposta abrirá um espaço fiscal para o governo poder gastar mais em 2021 (R$ 15 bilhões) e em 2022 (pelo menos R$ 83 bilhões). Isso virá da autorização para o governo não pagar parte dos precatórios (no próximo ano, seriam quitados R$ 44 bilhões e postergados R$ 45 bilhões para o ano seguinte) e com alteração no período de aferição do teto de gastos (regra que proíbe o crescimento das despesas do governo acima da inflação do ano anterior).
O que será gasto com esse dinheiro adicional foi motivo de disputa no plenário. O governo defendia que o uso será para pagar R$ 400 a 20 milhões de famílias carentes e a 750 mil caminhoneiros para ajudar na compra de diesel, além de reajustar gastos obrigatórios, como aposentadorias. A oposição denunciava que a intenção era abrir espaço para as emendas de relator ao Orçamento, usadas para destinar dinheiro para as bases eleitorais dos deputados.
Foi a utilização dessas emendas que o governo utilizou para construir sua base e também para viabilizar a aprovação da PEC. Como o Valor revelou nesta quarta-feira, desde o dia 24 o Executivo liberou o cadastro de convênios em cinco ministérios para envio de recursos indicados pelos deputados para prefeituras. A verba total poderia chegar a R$ 7,6 bilhões.
Líder da oposição na Câmara, o deputado Alessandro Molon (PSB-RJ) defendeu que a oposição está disposta a apoiar qualquer medida provisória (MP) com abertura de créditos extraordinários para manter o auxílio emergencial. “Nenhum parlamentar precisa manchar a sua biografia aprovando a PEC do calote em nome de auxílio”, disse. “Não há necessidade de PEC para auxílio emergencial, mas há necessidade de PEC para orçamento secreto”, afirmou.
Relator, Motta rebateu que a população carente não quer saber o nome do programa assistencial, se Bolsa Família ou Auxílio Brasil, e que a posição dos partidos de oposição era “incoerente com sua história”. “Quem está contra nosso relatório vota contra 17 milhões de famílias, mais de 50 milhões de brasileiros, que não querem saber quem é o presidente da República. Eles querem comer, não querem passar fome”, afirmou.
A votação ocorreu sob protestos de que o presidente da Câmara promoveu manobras regimentais e casuísticas. Diante da falta de quórum, ele autorizou que deputados que estão fora do país votassem pelo celular, recuando na regra de que apenas quem está em Brasília pode registrar seu voto. “Casuísmo seria ceder a pressões injustificadas para suspender a volta do presencial por 45 dias”, rebateu ele no plenário.
Lira também autorizou que o relator apresentasse um novo texto em plenário, incorporando trechos de um acordo com a bancada da educação que não estavam em nenhuma emenda protocolada até então. Por se tratar de mudança na Constituição, o regimento diz que a fase de apresentação de emendas encerrava na comissão especial.
O acordo gerou divergência dentro da bancada da educação. O deputado professor Israel Batista (PV-DF) disse que não houve apoio dos professores e que a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE) se manifestou contra. “Deputado da educação, não pense que tem acordo, não tem não senhor”, disse. “Não acertamos isso, e quem disse falar em nome dos professores não está falando em nome dos professores”, afirmou.
Já o vice-líder do PDT, deputado André Figueiredo (CE), disse que a votação mostrou o que diferencia a sigla dos demais partidos de esquerda e defendeu o acordo costurado pelo partido para “preservar a educação”. “Não está na hora de trabalharmos por questões eleitorais. Eleição se decide no ano que vem. O que nós temos que trabalhar agora é pelo bem da educação do nosso País, é por olhar para aquele que está literalmente passando fome”, declarou. A posição do PDT foi decisiva para a aprovar a PEC, com 15 votos a favor e 6 contra.
O acordo envolveu parcelar em três vezes os precatórios do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental (Fundef), com 40% no primeiro ano e 30% nos demais. Caso a PEC não tivesse sido aprovada, o governo teria que quitar essas dívidas em 2022. Também será votado projeto de lei na próxima semana para regulamentar que 60% das verbas ficarão com os professores porque a lei atual é contestada no Judiciário.
Somente nos quatro Estados com maiores volumes de precatórios do Fundef (Bahia, Pernambuco, Ceará e Amazonas), o volume a receber da União por conta de decisões do STF era de R$ 16,2 bilhões. Com os devidos aos municípios, a conta supera R$ 17 bilhões em 2022. Os futuros precatórios lançados do Fundef também seriam parcelados em três anos.
Além disso, o projeto permite que as prefeituras parcelem em 240 meses as dívidas previdenciárias com a União e com seus fundos de previdência locais e regulamenta a securitização (venda) da dívida ativa dos entes públicos. Outra mudança, na regra de ouro da economia (que proíbe o governo federal se endividar para pagar despesas correntes, como salários), teria o apoio do governo para ser excluída, avisou o líder Ricardo Barros (PP-PR).
Apesar de o Ministério da Economia originalmente ter sido atropelado nas discussões sobre o tamanho do novo programa social que será viabilizado pela PEC, a pasta desde a semana passada a defende como melhor caminho. O temor era que, sem ela, governo e Congresso adotassem alternativas mais difíceis de controlar, como um decreto de calamidade pública para enfrentar os impactos sociais e econômicos da pandemia ou mesmo um crédito extraordinário sem respaldo de calamidade, que poucos técnicos no governo teriam disposição de assinar.
Fonte: Valor