Com um passaporte que lhe garantiu ficar longe das encrencas mais cabeludas na Justiça e à frente nas pesquisas de intenção de voto na corrida ao Palácio do Planalto em 2022, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva tem feito uma das coisas de que mais gosta: falar.
Desde que teve suas condenações na Lava-Jato anuladas pelo STF no início do ano, o petista já concedeu ao menos quarenta entrevistas a veículos brasileiros — em sua grande maioria, rádios locais e sites que comungam a sua cartilha ideológica — e internacionais, além de discursar em encontros com militantes e políticos com vistas a ampliar o arco de apoios a sua candidatura.
Nessas ocasiões, Lula tem acentuado as críticas ao governo de Jair Bolsonaro e repete uma pregação que soa como música aos ouvidos de sua base de esquerda: forte participação do Estado na economia, recuo nas reformas, freio nas privatizações, regulação de mídia, participação de movimentos sociais no governo, fim do teto de gastos, aumento da tributação dos mais ricos e expansão de programas de transferência de renda.
ESTADO FORTE
“O Estado fraco não serve para nada. É preciso ter um Estado que não só tenha capacidade de investimento, como tenha empresas públicas capazes de fazer investimento, que é o caso da Petrobras, dos Correios, da Eletrobras, da Caixa, do Banco do Brasil e do BNDES”
Entrevista à Rádio 97 FM (RN), em 24/8/2021.FIM DO TETO DE GASTOS
“Não pode ter um teto de gastos para ter o povo passando fome para atender aos credores do sistema financeiro. Eu não terei teto de gastos”
Entrevista à Rádio Salvador (BA), em 6/7/2021
Nos últimos dias havia uma expectativa dentro do partido para organizar uma coletiva a grandes veículos de comunicação em Brasília. A tendência é que nesse tipo de evento ele adote um discurso mais moderado. Até aqui, no entanto, o tom geral da pregação de Lula tem sido de aceno ao passado e uma decepção para quem apostava em gestos de aproximação ao centro. Com 48% das intenções de voto (contra 23% de Bolsonaro) no primeiro turno, segundo pesquisa Ipec de 22 de setembro, ele pretende faturar com uma lembrança idealizada de algumas bandeiras na sua passagem pela Presidência há quase vinte anos — que deixou com aprovação superior a 80%. Não por acaso, Lula sempre cita programas como Luz para Todos, Ciência sem Fronteiras, , Prouni, Minha Casa Minha Vida, agricultura familiar e Bolsa Família. Evidentemente, dentro de uma visão de que a falta de memória é uma característica nacional, o passado idílico que Lula tenta recuperar no discurso aos convertidos exclui os capítulos dos graves problemas da era petista. “O tempo passa e as pessoas não tendem a fixar detalhes negativos, mas o que ficou de positivo”, afirma o cientista político José Alvaro Moisés, da USP.
Depois da euforia inicial construída à base de feitos como a melhora dos indicadores sociais de redução da pobreza e de acesso aos bens de consumo, grande parte deles obtida em meio a tempos de grande bonança pela demanda internacional pelas commodities, seguiu-se a derrocada, com reflexos que permanecem até hoje. Muito embora os primeiros sinais de esgotamento do modelo petista tenham começado a surgir no final do segundo mandato de Lula, foi no governo de Dilma Rousseff que a situação descambou de vez: a economia desacelerou globalmente, o PIB brasileiro retraiu e a inflação cresceu junto com o desemprego. Considerando-se que o Brasil vive outra grande crise econômica, é preocupante que o líder das pesquisas apresente como “solução” um receituário econômico que já se revelou desastroso passado.
Curiosamente, a nova versão do “Brasil Grande” de Lula é defendida pelos petistas com uma espécie de selo made in USA. O entorno do petista gosta de citar o plano de retomada de Joe Biden, que prevê a injeção de 6 trilhões de dólares para a recuperação dos Estados Unidos pós-pandemia. “Essa visão neoliberal de Estado mínimo e de austeridade é um dogma ideológico que o mundo está revendo”, defende o ex-ministro Aloizio Mercadante, um dos nomes que estão à frente da formulação das ideias petistas para a eleição presidencial de 2022. Na comparação com o exemplo americano, no entanto, falta lembrar que intervenções do Estado em situações de crise já ocorreram outras vezes na história dos Estados Unidos, mas são sempre pontuais. Ou seja, estão longe de representar uma guinada ideológica na condução da economia. Mas é o suficiente para Lula usar a parte que lhe interessa para reforçar o discurso à plateia cativa. “O intervencionismo estatal voltou a ter espaço, e o consenso neoliberal de alguma forma está mais enfraquecido. Isso dá mais espaço para Lula ter esse tipo de discurso”, avalia o cientista político Claudio Couto, professor da FGV.
RECUO NAS REFORMAS
“Que trabalho é esse que não garante salário fixo, seguridade social, remuneração de sábado e domingo, férias e 13º salário? Quem ganha com isso? Certamente, não são as pessoas que trabalham”
Entrevista coletiva durante visita ao Recife em 16/8/2021DISTRIBUIÇÃO DE RENDA
“Se a gente quer realmente consertar o Brasil, não podemos continuar sendo um país concentrador de renda (…). Quando você coloca o povo pobre no Orçamento, ele vira consumidor”
Entrevista à Rádio Vitoriosa (MG), em 21/9/2021TRIBUTAÇÃO DE RICOS
“Do jeito que está, quem ganha 7 000 reais por mês paga mais imposto proporcionalmente do que quem ganha 70 000 reais. Que as pessoas paguem imposto sobre dividendos, sobre lucros, sobre herança. Precisamos de uma reforma tributária progressiva”
Entrevista coletiva durante visita ao Piauí, em 18/8/2021
A aposta do petismo na ação do Estado para salvar a economia é uma visão pra lá de equivocada. A ideia básica é que o investimento privado virá a reboque do gasto público. “Na hora que o Estado investe, significa que ele está acreditando em sua política econômica, e os empresários vão atrás”, sintetizou Lula em entrevista à Rádio Vitoriosa (MG), no último dia 21. Para alavancar esse investimento público , o petismo conta com estatais como Petrobras, Eletrobras, Banco do Brasil, Caixa, BNDES e Correios — que o PT nem cogita privatizar. Se não bastassem os escândalos de corrupção relacionados ao uso dessas empresas para desvio de recursos com fins políticos, o ataque desenfreado aos cofres das companhias está entre os fatores de origem da atual recessão. “O aumento persistente do gasto público passou escondido enquanto a arrecadação ainda crescia no ritmo que cresceu, impulsionada por commodities”, observa Alexandre Schwartsman, ex-diretor do Banco Central. “Nossa dívida saltou de 50% para 80% do PIB, e aí o que vimos foi pressão em câmbio, nos juros, sem uma contrapartida de investimento.”
O discurso petista, no entanto, não inclui só o aumento do Estado, mas também a revogação do teto de gastos — defendida abertamente por Lula, ao lado de medidas para aumentar a arrecadação de impostos. Uma das ideias que devem estar no centro das propostas do petista em 2022 é a redução da carga tributária sobre o consumo — através de impostos indiretos, como ICMS e IPI — e aumento dos impostos de quem ganha mais, seja pela taxação de grandes fortunas, pela tributação sobre lucros e dividendos ou por ajustes na tabela do imposto de renda para ampliar a faixa de isenção e aumentar a alíquota de quem tem mais renda. “Tem uma parcela das pessoas de alta renda que realmente paga muito pouco. O grande desafio é como corrigir essa distorção sem prejudicar o crescimento”, observa o economista Bernard Appy, diretor do Centro de Cidadania Fiscal, um dos autores do texto que deu origem à PEC 45, que unificava PIS/Cofins, IPI, ICMS e ISS — e que foi enterrada na Câmara. A proposta, aliás, contava com a simpatia do PT.
No campo da política externa o discurso de Lula também é feito com um olho no retrovisor. Ele vem acenando com a retomada da política de redução do protagonismo dado aos Estados Unidos e à Europa. Outra ideia é fortalecer os laços com a América Latina, inclusive criando um bloco econômico que vá da América do Sul ao México. A região, porém, está mais dividida hoje no espectro político e nem mesmo a integração sul-americana é um consenso. O que não deve mudar é a simpatia histórica do PT pelos regimes de Cuba e da Venezuela, que Lula se esquiva de reconhecer como ditaduras. “Não discuto o regime político de cada país”, disse. O risco, além do compromisso político com governos que não se pautam pela democracia, é a repetição de erros como a concessão de empréstimos a países que não tinham condições de pagá-los, baseada na aproximação ideológica. Segundo o BNDES, Venezuela e Cuba, que receberam mais de 2,1 bilhões de dólares, têm, respectivamente, dezessete e doze prestações de seus financiamentos atrasadas – somadas, elas chegam a 708 milhões de dólares.
REAPROXIMAÇÃO COM PAÍSES SOCIALISTAS
“Eu tinha relação com a Venezuela e tinha uma relação extraordinária com Cuba. Não discuto o regime político de cada país”
Entrevista à Rádio RNE (Espanha), em 16//9/2021ENFRENTAR EUA E CHINA
“É possível construir uma América Latina e uma América do Sul como um grande bloco econômico, que faça frente ao bloco que representa os EUA e Canadá, ao bloco da Europa e ao bloco da China. Podemos fazer isso”
Entrevista à TV estatal TeleSUR (Venezuela), em 24/6/2021
A retórica saudosista de Lula pode ter um prazo de validade em nome no pragmatismo político. Da mesma forma como se reuniu com a cúpula do MDB na última quarta, 6, com algozes de Dilma como Edison Lobão e Eunício Oliveira, é dado como certo um gesto semelhante à Carta ao Povo Brasileiro que tente trazer parte de setores empresariais e de mercado para o seu lado — ou ao menos acalmá-la. O documento, lançado em junho de 2002, a pouco mais de três meses da eleição, visou reduzir o nervosismo do mercado financeiro com a perspectiva de vitória do petista. Igualmente, é esperado que o programa seja modulado conforme avançarem as negociações que o petista tem empreendido para formar alianças. A guinada de Lula mais ao centro, depois da aglutinação de sua base tradicional, é vista como um possível movimento para ampliar o arco de apoio na campanha. Se ficar muito à esquerda, corre o risco de abrir uma avenida eleitoral entre ele e Bolsonaro, pela qual poderia trafegar uma terceira via, como esperam Ciro Gomes (PDT) e João Doria (PSDB). “Até o ano que vem ele deve fazer uma inflexão no sentido de compor uma aliança mais ampla que vai obrigá-lo a falar com diversos segmentos da sociedade, inclusive o mercado financeiro. Terá de ajustar o discurso”, afirma Couto, da FGV. Até aqui, ressalte-se, o tom é vermelho.
A questão judicial é outro constrangimento para sua candidatura. Apesar de o STF ter devolvido a Lula a sua liberdade e os seus direitos políticos, ainda há algumas encrencas para o petista na Justiça, embora nenhuma delas tenha potencial para tirá-lo do jogo eleitoral em 2022. Existem duas ações em tramitação na Justiça Federal de Brasília: uma que apura tráfico de influência na compra de 36 caças suecos Gripen em 2014 e outra relativa ao tríplex do Guarujá, que teria sido propina da OAS. Outros dois casos enviados pelo STF à primeira instância em Brasília aguardam andamento: um que apura doações ao Instituto Lula e outro que envolve a cessão de um terreno pela Odebrecht para a construção de uma sede para a mesma instituição. Em ambos, o ministro Ricardo Lewandowski deu liminar suspendendo o andamento por causa da precariedade das provas colhidas até agora, mas o Ministério Público Federal ainda pode reunir elementos para oferecer novas denúncias. Apesar disso, Lula se vale da aura de injustiçado recém-conquistada com a anulação de suas condenações. É provável porém, que o clima volte a ficar pesado para o petista com o acirramento da disputa. Seus adversários certamente vão lembrá-lo durante a campanha do gigantesco esquema de corrupção montado em seu governo. Hoje em céu de brigadeiro, a candidatura está fatalmente sujeita a fortes turbulências em um futuro próximo.
Fonte: Revista VEJA