O escritor nicaraguense Sergio Ramirez vive o segundo exílio. Da primeira vez, foi alvo da ditadura Somoza, regime contra o qual lutou, nos anos 1970, ao lado do líder da Frente Sandinista de Libertação Nacional, Daniel Ortega. Viu o antigo companheiro virar presidente e depois ditador da Nicarágua, atualmente em seu quarto mandato consecutivo.
Condecorado com prêmios importantes, como o Cervantes, Ramirez teve a prisão decretada pelo regime de Ortega, que o acusou de traidor da pátria. Aos 80 anos, vive na Espanha, novamente como exilado político. No fim do mês passado, perdeu a nacionalidade nicaraguense, com outros 316 opositores, em mais uma manobra do regime para silenciar as vozes críticas.
O mais prestigiado escritor do país foi vice-presidente de Ortega entre 1986 e 1990. Ambos romperam por visões antagônicas sobre a democracia e trilharam caminhos diferentes. Nesta entrevista ao g1, ele traça um retrato sombrio de seu país, de onde mais de 200 presos políticos foram deportados pelo regime num voo para os EUA e, tornados apátridas, da noite para o dia.
Ramirez recebeu apoio e ofertas de cidadania de vários governos da América Latina, como Equador, Colômbia e Chile. Do Brasil, constata apenas um silêncio que admite ser desconcertante e incômodo. “Antes de falar de diálogo, o Brasil deve se pronunciar em respeito à democracia na Nicarágua e à barbárie que significa retirar a cidadania de nicaraguenses que se opõem ao governo”, afirma.
Leia abaixo a entrevista de Ramirez:
Todas as figuras proeminentes da oposição estão agora condenadas ao exílio forçado e sem a sua nacionalidade nicaraguense. Que futuro vê para o seu país?
Sergio Ramirez – Trata-se de um país onde as instituições democráticas estão desarticuladas, toda a oposição está no exílio e há presos políticos, entre eles o bispo Rolando Alvarez. O país não tem jornal impresso, todos os meios de comunicação são produzidos fora do país e são transmitidos eletronicamente. É uma situação de ausência total de democracia, é uma luta muito difícil a que a oposição terá que empreender pela força democrática e de maneira pacífica para restabelecer a democracia sem confrontos ou derramamento de sangue.
Como se consegue uma mudança de regime, já que é cada vez mais difícil enfrentar Ortega?
Sergio Ramirez – A ditadura na Nicarágua perdeu toda a legitimidade e todo o crédito internacional. Um regime que se vale exclusivamente da repressão não pode durar muito tempo, não pode ser eterno. É um regime que não tem nenhuma classe de consenso social. O consenso que um dia teve com a empresa privada, a Igreja Católica e a classe média não existe mais, milhares de pessoas fugiram do país. Então, não tem bases firmes de sustentação. Todas as medidas que tomou, como libertar os presos políticos e retirar a sua nacionalidade, são para mim uma mostra de debilidade e não de fortaleza.
Por que o senhor vê o exílio dos opositores como um sinal de fraqueza do regime?
Sergio Ramirez – As medidas extremas nunca são uma demonstração de fortaleza. É a primeira vez na história da América Latina que um regime autoritário retira a nacionalidade de maneira massiva de cidadãos que se opõem a ele. O único antecedente distante foi o regime de Pinochet e o fez de maneira seletiva.
O senhor tinha Ortega como aliado contra a ditadura de Somoza. Como e quando percebeu que ele estava se transformando em ditador?
Sergio Ramirez – Depois das eleições de 1990, quando Ortega foi derrotado por Violeta Chamorro e fez uma oposição violenta contra o novo governo eleito democraticamente. Não respeitou a regra de democracia que nós mesmos ajudamos a criar. Em 2006, depois de várias tentativas de regressar à Presidência, Ortega venceu a eleição, mas não baseado no crescimento e no respaldo à Frente Sandinista, mas apoiado pelo grande capital e pela Igreja Católica. Fez aliança com um presidente corrupto, Arnaldo Alemán, que promoveu uma reforma constitucional para reduzir a quantidade necessária de votos para se eleger no primeiro turno.
Como era a sua relação com Ortega quando era vice-presidente?
Sergio Ramirez – Era muito próxima, trabalhamos juntos, compartilhamos tarefas de governo. Não poderia ser uma relação ruim. Ela começou a deteriorar-se quando encabecei o Movimento Renovador Sandinista, que proclamava a democracia como instrumento necessário para realizar o poder, e ele defendia a derrubada do governo de Violeta Chamorro pela violência. Então, houve uma separação muito radical dos caminhos que cada um seguiu.
Qual a sua avaliação da posição do governo brasileiro diante de Ortega?
Sergio Ramirez – Até agora, para mim, é muito desconcertante a posição do presidente Lula porque é um silêncio demasiado visível e notável. Governos da América Latina, tanto de esquerda quanto de direita, como Equador, Argentina, México, Colômbia, se pronunciaram. Na votação da OEA, o Brasil se absteve de condenar Ortega e tampouco disse uma só palavra. É uma situação que me desconcerta muito porque Lula conhece muito bem a situação da Nicarágua. Ele esteve no país quando era dirigente sindical. Eu o conheci na Nicarágua nos anos 1980, ele foi à minha casa. Lula regressou ao país em 1992 para o I Congresso da Frente Sandinista. Eu o ouvi pronunciar um discurso que não agradou a Ortega, dizendo que não havia duas classes de democracia, mas apenas uma. Não havia democracia proletária, nem democracia burguesa, mas a democracia, que deveria ser respeitada. Já como presidente, voltou à Nicarágua. Então, não se pode dizer que Lula ignora que o país vive uma deriva autoritária, que a Nicarágua transformou um sonho revolucionário em ditadura. Eu acredito que se alguém aconselhou o presidente Lula de que não deve falar porque Ortega é um governo de esquerda, devo dizer que ele não representa nenhuma esquerda da América Latina. A esquerda é o presidente Gabriel Boric, que denunciou a ditadura da Nicarágua. A esquerda é o presidente Gustavo Petro, que pediu à Corte Internacional que se ocupe do caso da Nicarágua.
O que o senhor e os outros opositores esperam do presidente Lula?
Sergio Ramirez – Que dê respaldo moral à democracia da Nicarágua e não a ninguém em particular. Que lute pela democracia. A voz do Brasil é muito importante para a América Latina para a luta pela democracia e contra a ditadura.
O senhor vê esta posição do atual governo como uma contradição em relação ao que o Brasil viveu nos últimos quatro anos, com o governo Bolsonaro?
Sergio Ramirez – Nós vimos com muita esperança o regresso de Lula ao poder porque representa um regresso à democracia, em contraposição a um governo autoritário como o de Bolsonaro. Celebramos esse triunfo da democracia, de Lula. Por isso, é muito desconcertante a sua posição. Tenho esperança de que escutaremos a voz de Lula pronunciando-se sobre o governo da Nicarágua. Sabemos que o país é pequeno e talvez não represente nada para os interesses do Brasil, mas, acima de tudo, este é um assunto de importância moral.
O senhor acha que Lula pode interceder como mediador para o diálogo entre o regime e seus opositores?
Sergio Ramirez – Antes de falar de diálogo, o governo do Brasil deve se pronunciar em respeito à democracia na Nicarágua e à barbárie que significa retirar a cidadania de nicaraguenses que se opõem ao governo. Trata-se de uma medida bárbara e medieval, que está proibida pelas convenções internacionais. É por esse princípio de ética política que o pronunciamento do Brasil deveria começar.
Qual foi a sua reação quando soube que o regime tinha retirado a sua nacionalidade? O que mudou na sua vida desde então?
Sergio Ramirez – Me senti vítima de uma medida arbitrária e ilegal de um governo que não tem legitimidade e que é proibida pela Constituição da Nicarágua. É um ato político que não tem, para mim, nenhuma validade. Por outro lado, me senti muito amparado pelo fato de que países como Espanha, Colômbia e Equador me ofereceram a cidadania.
Esta é a segunda vez que o senhor enfrenta o exílio. A primeira na ditadura Somoza e agora na de Ortega. Qual é a diferença entre as duas situações?
Sergio Ramirez – A diferença mais importante é a juventude. Quando Somoza me processou e ordenou minha prisão também por traição à pátria, eu regressei à Nicarágua para me juntar à luta. Não temi a prisão, não temi a morte. Não quero ser retórico, mas neste momento a juventude lhe dá ânimo. Hoje eu não tenho nenhuma participação política. Sou um escritor que critica o que vê, mas não pertenço a nenhum partido, não almejo qualquer liderança política. Estou sendo castigado por ser um escritor e por ser crítico. Aceito o exílio como algo inevitável. Mas tenho muita esperança de que voltarei à Nicarágua.
Fonte: G1