Por João Ker
A queda de braço entre o presidente Jair Bolsonaro e o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), sobre a aquisição da Coronavac pelo Ministério da Saúde teve novo capítulo nesta quarta-feira, 21, quando o governo federal recuou da decisão de comprar 46 milhões de doses da vacina contra o coronavírus para distribuição nacional. Com o embate, o cenário de imunização no Brasil fica ainda mais incerto que antes, e especialistas ouvidos pelo Estadão afirmam que a politização de um novo capítulo da pandemia não só confunde a população, como ainda é precoce e contraprodutivo.
“Essa disputa política tem atrapalhado muito a confiança que as pessoas têm na vacina e nas instituições”, afirma Natália Pasternak, doutora em Microbiologia e presidente do Instituto Questão de Ciência. “Ao invés de ficarem nessa disputa adolescente de ver quem tem a vacina maior, eles deveriam se comunicar com a sociedade para garantir que, quando a vacina estiver pronta e disponível, teremos uma boa campanha de vacinação.”
Apesar de o governador afirmar que a imunização no Estado de São Paulo deve começar ainda em dezembro deste ano, Natália explica que ainda é cedo para afirmar se essa vacina (ou qualquer outra) é eficiente. “O que ele recebeu é uma análise interina de segurança, que realmente apontou que ela é segura. Mas a eficácia ainda está sendo testada”, observa. Os dados sobre a eficácia da vacina devem sair até o fim do ano.
“Ainda estamos em fase de testes, que exigem avaliações criteriosas; a partir disso, será necessária a divulgação dos resultados para a comunidade científica, a necessidade de julgamento e aprovação pela Anvisa, definição de um planejamento, compra, distribuição da vacina”, afirma Leonardo Weissmann, médico infectologista do Instituto Emílio Ribas e consultor da Sociedade Brasileira de Infectologia. “Acredito que, na melhor das hipóteses, poderemos pensar em vacinação dos brasileiros a partir do meio de 2021.”
Mesmo que a Coronavac prove sua eficácia e já contando com o acordo fechado para que a Sinovac forneça 46 milhões de doses da vacina ao Instituto Butantã ainda este ano, a imunização nacional será um desafio se não houver apoio do governo federal. “Não ter a estrutura do Ministério da Saúde acompanhando uma campanha nacional de imunização é uma situação de calamidade, abre inclusive a possibilidade para tomar-se medidas legais”, afirma Walter Cintra Ferreira, médico sanitarista e professor de Gestão de Saúde da FGV. A Rede Sustentabilidade protocolou nesta quarta, 21, ação no Supremo Tribunal Federal (STF) para obrigar Bolsonaro a assinar protocolo de intenções para a compra das doses da Coronavac.
No artigo 7º da lei 8.080 (1990), que regulamenta as ações e serviços de saúde em nível nacional, são estabelecidos princípios como universalidade, integralidade e igualdade de acesso da população aos serviços do Sistema Único de Saúde (SUS), além da “utilização da epidemiologia para o estabelecimento de prioridades, a alocação de recursos e a orientação programática”.
Ainda no artigo 15º, é determinado que para o atendimento de necessidades coletivas, urgentes e transitórias, decorrentes de situações de perigo iminente como a irrupção de epidemias, “a autoridade competente da esfera administrativa correspondente poderá requisitar bens e serviços, tanto de pessoas naturais como de jurídicas, sendo-lhes assegurada justa indenização”.
“A União poderá executar ações de vigilância epidemiológica e sanitária em circunstâncias especiais, como na ocorrência de agravos inusitados à saúde, que possam escapar do controle da direção estadual do Sistema Único de Saúde (SUS) ou que representem risco de disseminação nacional”, afirma o texto.
Uma das saídas previstas e já anunciada por Doria seria uma espécie de consórcio de governadores interessados na vacina e dispostos a negociarem diretamente com o governo paulista para a aquisição das doses, já que a Coronavac, até o momento, é a que está em estágio mais avançado de testagens. “A possibilidade certamente existe, se houver vontade política no interesse público. Os governadores já fizeram isso através do Conass (Conselho Nacional de Secretários de Saúde) e no acompanhamento dos casos da covid, quando o governo federal começou a não cumprir o seu papel de monitoramento da pandemia. Agora, é lamentável que haja esse nível de desagregação entre os governos”, avalia Ferreira.
A resistência de Bolsonaro em confirmar o apoio financeiro para a produção da Coronavac foi na contramão do contrato firmado com o laboratório AstraZeneca para a compra de 100 milhões de doses da vacina desenvolvida pela farmacêutica em parceria com a Universidade de Oxford. Entretanto, ambas estão em fase de testes e não tiveram sua eficácia comprovada pela Anvisa.
“Tanto a vacina produzida pelo Sinovac, quanto a produzida pela Astrazeneca estão em fase 3 de testes (a mais avançada no desenvolvimento de imunizantes, com testes em humanos). Além disso, nem uma nem a outra foi aprovada pela Anvisa”, observa Weissmann. “O Sistema Único de Saúde prevê que é dever do governo oferecer assistência de saúde igualitária para todos, em todas as esferas. Essa diferenciação poderá fazer com que o princípio da equidade seja descumprido.”
“É de espantar que o presidente defina de antemão que não vá comprar essa ou aquela. Qual é o limite do governo federal em termos de absurdos?”, questiona Ferreira. Natália aponta ainda que, ao contrário do que o presidente afirmou, os brasileiros não estão sendo “cobaias” de testes, já que o processo de testagem na população, em todos os casos, é internacional, de praxe e feito de forma voluntária.
“Temos quatro vacinas sendo testadas no Brasil e o mundo inteiro está passando por isso. Não há outra maneira de testar”, explica “Esses voluntários serão acompanhados por anos para reportar efeitos adversos e comparar com outros resultados. Sempre foi assim, isso só reflete a completa ignorância do presidente sobre o processo.”
Ainda é cedo para pensar em obrigatoriedade
Outro erro cometido por ambas as partes e apontado pelos especialistas é a possível obrigatoriedade da vacina. Enquanto Doria afirma que ela será uma realidade no Estado, Bolsonaro rebate dizendo que a imunização será opcional. A discussão, entretanto, ainda é precoce.
“Essa discussão sobre obrigatoriedade é completamente inoportuna e irrelevante. Não deveríamos discutir sobre uma vacina que não foi aprovada. Ainda precisamos produzir doses, capacitar profissionais, fazer campanhas de vacinação e levar a população para o SUS”, avalia Natália, que enxerga no tópico uma forma de aumentar a desconfiança da população no processo científico. “O País sempre foi favorável a vacinas e a enxergou como direito e não dever.”
“É obrigação das autoridades trabalhar pela conscientização da população quanto à eficácia e segurança das vacinas, não ficar brigando para ver quem obriga e quem não obriga”, observa Weissman. “Tomar a vacina é uma decisão em que o indivíduo não deve pensar somente em si, mas no coletivo.”
Para Natália, a discussão deve ser retomada apenas se houver problemas de adesão à vacinação quando ela estiver com sua eficácia comprovada e disponível no SUS. “Se ainda assim tivermos uma parte da população confusa e assustada, aí poderíamos discutir obrigatoriedade. Mas isso não é com o agente de saúde invadindo a casa das pessoas com agulha na mão. É impondo restrições à vida civil.”