Uma mulher de 82 anos foi resgatada de uma residência de um casal de médicos em Ribeirão Preto, no interior de São Paulo, depois de trabalhar como empregada doméstica sem receber salários por 27 anos, em uma situação considerada análoga à de escravidão.
Foi no dia 24 de outubro que o MPT (Ministério Público do Trabalho), a Gerência Regional do Trabalho de Ribeirão Preto e a Polícia Militar resgataram dona Neusa (nome fictício) depois de receberem uma denúncia anônima. Processados, os médicos tiveram seus bens bloqueados no dia 1º de dezembro pela Justiça Trabalhista, que concedeu liminar condenando o casal a pagar uma indenização de R$ 815,3 mil à idosa. Cabe recurso da decisão.
O nome do casal não foi divulgado pelo MPT.
“Cedida” por antiga patroa aos médicos
Os investigadores tentam descobrir se dona Neusa já trabalhava em condição análoga à de escravo antes de chegar à casa dos médicos. Negra e analfabeta, ela começou a trabalhar como doméstica ainda criança na casa de outra família, quando, segundo a investigação, foi “cedida” aos médicos aos 55 anos, depois que a antiga patroa morreu.
“Sem estudos, amigos ou relacionamentos amorosos, ela se submeteu a essa situação por ser extremamente vulnerável”, diz o procurador Henrique Correia, que participou do resgate.
“Minha vontade era de te esganar”
“É uma pessoa que começou a trabalhar ainda criança. É a realidade que ela conhece: Trabalhar dia e noite para uma família sem nenhum reconhecimento”, afirma a fiscal do trabalho Jamile Freitas Virginio, que diz ter ouvido da patroa de Neusa, durante a inspeção na casa, frases como “minha vontade era de te esganar”, “eu queria te bater, se pudesse”.
A patroa chegou a dificultar a investigação, segundo o MPT. Primeiro “tentou fugir da residência, levando consigo a trabalhadora”, mas acabou surpreendida pela PM. Depois, quis evitar que dona Neusa se identificasse, “tentando impedir a entrega de documentos pessoais”.
“Sonhando em ter uma casinha”
Durante a visita dos fiscais aos médicos, dona Neusa se manteve em silêncio. Segundo o MPT, ela apenas confirmava com a cabeça as informações prestadas pela patroa e obedecia “quando lhe era ordenado” que entrasse para casa. ”
A submissão talvez se justificasse pela promessa da realização de um sonho: um dia ‘ganhar uma casinha’ da patroa”, diz o MPT. Em seu depoimento, a idosa afirmou que a chefe “guardava seu dinheiro” para lhe comprar uma casa, o que nunca aconteceu.
A história foi confirmada pelo depoimento de vizinhos, que disseram às autoridades que a ‘vozinha’ já havia afirmado que só continuava trabalhando aos 82 anos porque esperava pela casa que sua patroa havia prometido.
“Sem salário, nem folga”
Sem direito a salário ou folgas semanais, dona Neusa contou em depoimento que os patrões enviavam cerca de R$ 100 por mês ao irmão dela. O dinheiro, no entanto, vinha do BCP (Benefício Previdenciário Continuado), que ela recebia em razão da idade.
“A empregada não tinha nem sequer acesso ao seu cartão de saque, que ficava com a patroa. Não existem recibos de pagamentos de direitos trabalhistas ou conta corrente que fosse usada para o pagamento de salário”, diz o MPT. ”
A vítima trabalhava havia quase três décadas sem nenhum recolhimento previdenciário, sem registro na carteira de trabalho, sem garantia de recebimento de salário, de férias, de 13º salário”, diz Jamile.
“Essa é a principal característica do trabalho escravo contemporâneo: nega a sua dignidade, o trata de maneira desigual porque não o entende como digno de ter aqueles direitos respeitados”, disse a auditora fiscal, Jamile Freitas.
Correia, do MPT, afirma que o caso “configura crime de redução à condição análoga à de escravo, nas modalidades ‘trabalho forçado’ ou ‘trabalho em condições degradantes'”.
Quais serão os direitos da vítima?
Além da indenização de R$ 815,3 mil, dona Neusa terá direito ao seguro-desemprego e verbas rescisórias. Ela foi levada à Defensoria Pública da União para resolver as pendências previdenciárias, enquanto os médicos podem ser incluídos na chamada “lista suja do trabalho escravo”.
“Pensa-se que o trabalho escravo é algo que acontece nos rincões isolados do país, mas no estado mais rico da nação isso também acontece. É algo que nos faz refletir sobre quais são os valores sociais que estamos cultivando”, destacou a auditora fiscal.
Desde 1995, a Inspeção do Trabalho no Brasil resgatou 59,2 mil pessoas em situação de escravidão moderna. Em 2022, foram 1.565 resgatadas até o momento.
Fonte: Uol