Uma em cada cinco cidades no Brasil conta com mais eleitores do que habitantes, uma anomalia que atinge sobretudo pequenos municípios e se concentra principalmente em cinco estados: Minas Gerais, Goiás, Paraíba, Piauí e Rio Grande do Sul. Eles somam 624 das 995 localidades com mais voto na urna do que residentes. O resultado é absurdo, já que pelo menos 20% da população no Brasil está abaixo do limite etário para votar, de 16 anos. O levantamento cruza dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) de julho de 2024 com os dados preliminares do censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2022 e foi elaborado pelo Valor Data.
Essa situação passa longe das grandes e médias cidades, mas a conta sobre o eleitorado total pesa em Estados com base eleitoral nos pequenos municípios, abaixo de 10 mil habitantes. Nessa faixa se enquadram 921 dos 995 municípios com eleitorado excedente. Estão nessa situação 42% das cidades do Piauí, 40,4% da Paraíba e 39,8% de Goiás. No caso de Minas e Rio Grande do Sul, o percentual se dilui. A proporção nacional é de 17,9%.
No caso do Piauí, 19% do eleitorado vota em cidades com menos habitantes do que eleitores, um recorde nacional. Paraíba e Rio Grande do Norte também têm percentuais acima de dois dígitos, o que sinaliza que esta particularidade pode ter peso na eleição proporcional para deputado estadual e federal, em que a base municipal é estratégica.
A situação de um eleitor migrar para outra cidade sem transferir o título para onde reside na eleição subsequente é extremamente normal no Brasil – tanto que a abstenção eleitoral, ou seja, a ausência do eleitor na votação, costuma ficar na faixa de 20% a cada eleição Mas o caso do Piauí chama a atenção porque há um processo de transferência de títulos para os micromunicípios, em que normalmente a prefeitura é o único empregador.
Há várias ações em tramitação na Justiça Eleitoral do Piauí pedindo uma revisão do eleitorado nessas cidades, por indício de fraude. Em Assunção do Piauí, por exemplo, a base de eleitores cresceu 24% entre 2020 e 2024, por meio de transferência de domicílio. Advogados do PSD e do PT locais tentaram impugnar este ano 114 transferências como sem vínculo com o município. A Procuradoria Regional Eleitoral tem rejeitado todas elas. Um dos argumentos é que a revisão em ano eleitoral é inviável.
Procurada, a Procuradoria Regional Eleitoral do Piauí enviou uma nota, em que afirma que a revisão eleitoral para ser autorizada depende de dotação orçamentária prévia. Além disso precisa atender a três quesitos: ” o total de transferências ser 10% superior ao do ano anterior; o eleitorado for superior ao dobro da população entre dez e quinze anos, somada à de idade superior a setenta anos; e superior a 80% da população projetada para aquele ano “.
De acordo com Wallyson Soares dos Anjos, advogado do PSD do Piauí, transferências irregulares podem definir uma eleição. “Estamos falando de municípios com menos de 8 mil eleitores, em que uma vaga de vereador pode ser decidida por 35 votos”, afirma.
Mas há fatores estruturais para se entender a força dos pequenos municípios no Piauí, para além da fraude. Dos 240 municípios do estado, boa parte é bem recente: 114 deles foram criados depois da Constituição Federal, sendo que 82 entre 1995 e 2001, durante o governo de Francisco Souza, o Mão Santa, atual prefeito de Parnaíba, um grande município.
Foram 82 novos municípios, cada um deles com prefeito, vice-prefeito e pelo menos nove vereadores, que geraram por si só uma máquina política alternativa, enfraquecendo a base oligárquica anterior.
“O Piauí é o único estado nordestino construído de dentro para fora, do interior para os pontos de comunicação. Em geral, as cidades se originaram de grandes fazendas”, explica o cientista político Vitor Sandes, da Universidade Federal do Piauí. “Cada cidade média é cercada por um cordão de pequenos municípios, com famílias políticas muito consolidadas, ao contrário do que acontece nas cidades-polo. E isso cria um fator de atração para transferências de título em anos eleitorais”, diz.
Essa situação bizarra não é nova, mas a evolução impressiona. Em 2018, a Confederação Nacional dos Municípios divulgou um estudo em que identificou a mesma situação em 231 municípios, sendo 75 em Minas Gerais. Em 2007, de ofício, o TSE fez uma revisão do eleitorado em 1.128 cidades com uma quantidade suspeita de eleitores em relação ao total de habitantes. É uma pista que talvez esquemas arcaicos de criações de currais eleitorais, que evocam a República Velha, tenham deixado algum vestígio no chamado Brasil Profundo.
Fonte: Valor Econômico