O corregedor do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ministro Benedito Gonçalves, deu nesta terça-feira (27), o primeiro voto para condenar o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) por abuso de poder político e uso indevido dos meios de comunicação e deixá-lo inelegível por oito anos. A votação será retomada na quinta-feira (29).
O ministro afirmou que Bolsonaro espalhou “mentiras atrozes” sobre o TSE, fez “ameaças veladas” e instrumentalizou as Forças Armadas para investir contra o tribunal: “Flerte nada discreto com o golpismo.”
O pano de fundo do julgamento é a reunião convocada por Bolsonaro, então presidente, com embaixadores estrangeiros no Palácio da Alvorada, em 18 de julho de 2022, para disseminar mentiras sobre o sistema de votação brasileiro e as urnas eletrônicas. As falas do presidente foram transmitidas pela TV Brasil.
“A reunião não é uma fotografia na parede”, afirmou o ministro na abertura da sessão. “É patente a alta reprovabilidade da conduta.”
Como relator, Benedito Gonçalves abriu a votação. Ele apresentou uma versão resumida do voto, que tem 382 páginas. A leitura durou cerca de três horas.
O ministro concluiu que Bolsonaro usou o cargo e a estrutura da Presidência da República para espalhar notícias falsas, atacar o TSE, mobilizar apoiadores e promover a candidatura à reeleição.
“As agressões violentas à Justiça Eleitoral na verdade confirmam a importância da instituição para a salvaguarda da democracia”, afirmou Gonçalves.
Ele defendeu que a culpa do ex-presidente ficou demonstrada de “forma clara e convincente” por “fatos incontroversos” e “cabalmente provados”.
Bolsonaro foi considerado o único responsável pelo evento com os diplomatas. Com isso, o voto do relator livra da inelegibilidade o general Walter Braga Netto, vice na chapa bolsonarista em 2022.
Minuta golpista
Um dos primeiros pontos abordados pelo ministro foi a inclusão, no rol de provas do processo, da minuta golpista apreendida na casa do ex-ministro da Justiça, Anderson Torres, para decretar uma intervenção no TSE e anular o resultado da eleição.
O documento previa a criação de uma comissão, formada por Bolsonaro e por representantes do Ministério da Defesa, para fiscalizar o Tribunal Superior Eleitoral, afastar ministros e tornar sem efeito a vitória de Lula.
A defesa de Bolsonaro resgatou um julgamento da chapa Dilma-Temer, em 2017, para tentar excluir a minuta da ação. Na ocasião, o TSE proibiu a juntada de provas da Lava Jato ao processo contra a petista e seu então vice.
“São duas situações totalmente distintas”, rebateu o ministro. Ele argumentou que, no caso de Dilma Rousseff e Michel Temer, o material era “inteiramente autônomo” ao objeto da ação. Já a minuta, defendeu o ministro, foi usada para “demonstrar a gravidade da conduta” de Bolsonaro e tem “conexão” com as declarações dadas por ele na reunião com os embaixadores.
Gonçalves afirmou que o rascunho de decreto é “golpista em sua essência” e “perigosamente compatível” com a lógica defendida pelo ex-presidente. “Não há como dissociar os fatos e o contexto em que ocorreram. Além disso, toda comunicação é pragmática, pois se destina a influenciar ideias e comportamentos”, disse.
‘Responsabilidade integral’
O ministro descartou a participação dos Ministérios da Casa Civil e das Relações Exteriores e da Secretaria Especial de Assuntos Estratégicos da Presidência na organização do encontro. Gonçalves concluiu que Bolsonaro foi “integral e pessoalmente responsável” pela concepção do evento, pelo conteúdo dos slides apresentados aos diplomatas e pela tônica da exposição.
Ao levantar dúvidas sobre a segurança das urnas e do processo eleitoral, o ex-presidente fez referência a uma investigação da Polícia Federal sobre um ataque cibernético aos sistemas do TSE. Bolsonaro já havia usado o inquérito em transmissões ao vivo nas redes sociais para desacreditar o sistema de votação e defender o voto impresso. A PF concluiu que o grupo hacker não conseguiu manipular votos.
O relator fez uma análise minuciosa do discurso do ex-presidente e afirmou que Bolsonaro “teceu ilações” sobre uma suposta conivência dos ministros com o ataque hacker. O inquérito da PF foi aberto a pedido do TSE. O ministro disse ainda que o ex-presidente disparou “comentários insidiosos” a respeito dos membros do tribunal e apresentou uma versão “inteiramente distorcida”.
“O primeiro investigado (Bolsonaro) apresenta o TSE como instituição opaca, cooptada por magistrados e servidores com grande poder de interferência sobre o cômputo de votos e disposição para exercer esse poder em benefício do principal adversário do candidato”, criticou. “Essa narrativa não tem qualquer respaldo.”
Forças Armadas e ‘flerte com o golpismo’
O voto também aborda a relação de Bolsonaro com as Forças Armadas e o convite para militares acompanharem os testes de integridade das urnas eletrônicas.
O ministro afirmou que, na visão “perturbadora” do ex-presidente, o tribunal deveria se “sujeitar” aos militares. Gonçalves defendeu também que Bolsonaro se recusou a admitir o papel do TSE como autoridade responsável pela governança eleitoral.
“As Forças Armadas passaram efetivamente a ocupar um papel central na estratégia do primeiro investigado (Bolsonaro) para confrontar o TSE”, destacou. “Existe um flerte perigoso e nada discreto com o golpismo.”
O relator disse que Bolsonaro fez “ameaças veladas” e espalhou “mentiras atrozes” sobre o TSE em uma “empreitada para antagonizar” com o tribunal. Também acusou o ex-presidente de manipular informações para manter sua base política mobilizada. “Conspiracionismo, vitimização e pensamentos intrusivos foram fortemente explorados”, defendeu.
Uso indevido do cargo
O ministro concluiu que Bolsonaro usou indevidamente a estrutura física e operacional da Presidência, as prerrogativas de chefe de Estado e a TV Brasil para beneficiar sua candidatura à reeleição. O evento também foi transmitido ao vivo pelas redes sociais, o que ampliou o alcance do discurso.
“A extrema gravidade do uso indevido de meios de comunicação foi potencializada pelo uso dos símbolos da Presidência da República como arma anti-institucional, visando levar a atuação da Justiça Eleitoral ao completo descrédito”, acusou.
Retomada
Após Gonçalves, votam nesta ordem: Raul Araújo, Floriano de Azevedo Marques, André Ramos Tavares, Cármen Lúcia, Kassio Nunes Marques e Alexandre de Moraes. Todos os sete ministros devem ler seus votos, por causa do peso do julgamento, considerado histórico. Houve um acordo para que as manifestações não ultrapassem 30 minutos. O objetivo é garantir a conclusão do julgamento antes do recesso do Judiciário.
Um pedido de vista – mais tempo para análise – pode dar sobrevida ao ex-presidente e não está descartado. Interlocutores de Bolsonaro esperam contar com a fidelidade de Nunes Marques. Ele é um dos últimos a votar, o que aumenta as chances de a maioria estar formada. Nesse caso, o constrangimento de suspender um julgamento definido é maior, sobretudo considerando que os demais ministros podem adiantar o voto.
Além disso, a estratégia é limitada. Isso porque os pedidos de vista não podem durar indefinidamente. Os ministros têm até 60 dias para liberar o processo ou ele fica automaticamente disponível para voltar à pauta.
Dia 1 teve leitura de relatório e sustentações
O primeiro dia o julgamento, a quinta-feira, 22, ficou reservado para a leitura do relatório, documento que reconstitui o histórico de tramitação da ação, e para as manifestações dos advogados e do Ministério Público Eleitoral.
O primeiro a falar foi o advogado Walber de Moura Agra. Ele é coordenador jurídico do PDT e redigiu a ação movida pela legenda. A estratégia foi tentar ligar a reunião com os embaixadores a um contexto mais amplo de ataques antidemocráticos e investidas para desacreditar o sistema eleitoral, que culminou com os atos golpistas do dia 8 de janeiro em Brasília.
Fonte: Estadão/MSN