O Supremo Tribunal Federal (STF) mantém na pauta de julgamentos desta semana o caso que trata do marco temporal de terras indígenas. A discussão põe em lados opostos ruralistas e povos originários, se arrasta desde 2021 e vai definir como deve se dar o processo de demarcação de terras.
O caso está pautado para a sessão de quarta-feira (7). Na semana passada, o Legislativo resolveu avançar sobre o tema e aprovou um projeto na Câmara dos Deputados que estabelece a tese antes de o STF concluir sua análise.
Especialistas ouvidos pela CNN entendem que os deputados têm legitimidade de legislar sobre o assunto, mas que cabe ao Supremo a palavra final sobre a validade ou não da tese.
A discussão mobiliza indígenas, que consideram a tese uma ameaça. Quando a Corte começou a julgar o tema, em 2021, cerca de 5 mil indígenas acampavam em Brasília. Parte deles assistiu ao julgamento por meio de um telão montado na Praça dos Três Poderes, em frente ao STF.
O marco temporal, defendido por ruralistas, determina que a demarcação de uma terra indígena só pode acontecer se for comprovado que os indígenas estavam sobre o espaço requerido em 5 de outubro de 1988 — quando a Constituição atual foi promulgada.
A exceção é quando houver um conflito efetivo sobre a posse da terra em discussão, com circunstâncias de fato ou “controvérsia possessória judicializada”, no passado e que persistisse até 5 de outubro de 1988.
O placar do julgamento do marco temporal no STF está empatado em 1 a 1. O relator do caso, ministro Edson Fachin, manifestou-se contra a medida. Para o magistrado, o artigo 231 da Constituição reconhece o direito de permanência desses povos independentemente da data da ocupação.
O ministro Kássio Nunes Marques, por sua vez, votou a favor da tese. Considerou que o marco deve ser adotado para definir a ocupação tradicional da terra por indígenas. Em sua justificativa, ele disse que a solução concilia os interesses do país e os dos povos originários.
O julgamento começou a ser analisado pela Corte em 2021. Na ocasião, o ministro Alexandre de Moras pediu vista (mais tempo para análise). O magistrado devolveu o processo em outubro do mesmo ano.
Votar o marco temporal é uma promessa da atual presidente da Corte, ministra Rosa Weber. A magistrada, que se aposenta em outubro, anunciou no final de março que pautaria o caso. A declaração foi feita durante uma visita à aldeia indígena Paraná, no Vale do Javari, no Amazonas.
No mês seguinte, ela anunciou a data para julgamento em um evento ao lado da ministra Sonia Guajajara, “atendendo a reivindicação” da titular do Ministério dos Povos Indígenas.
No tempo entre pautar o processo e recomeçar de fato o julgamento (o que está previsto para 7 de junho), a Câmara firmou sua posição aprovando, em 30 de maio, um projeto de lei que estabelece o marco temporal.
A proposta é mais ampla, e traz pontos como a autorização para atividades econômicas em terras indígenas com a contratação de terceiros não indígenas e a participação de estados, municípios e pessoas diretamente interessadas, como produtores agropecuários, no processo de demarcação.
Uma ala dos deputados defendia que o Legislativo votasse o projeto antes que o STF julgasse o assunto. O texto ainda precisa passar pelo Senado.
Conflito?
Uma eventual aprovação dessa lei em definitivo pelo Congresso não permaneceria de pé se o Supremo declarasse inconstitucional a tese do marco temporal – pelo menos a parte a que se refere ao marco temporal, já que o projeto em tramitação no Legislativo é mais amplo e trata de outras questões.
“Se o Supremo decidir dizer não ao marco temporal, a lei não prevalece”, disse à CNN o advogado Belisário dos Santos Júnior, sócio de Rubens Naves Santos Jr. Advogados, ex-Secretário de Justiça do Estado de São Paulo (1995) e integrante da Comissão Internacional de Juristas e da Comissão Arns de Direitos Humanos.
Nesse cenário hipotético de derrubada do marco temporal pelo STF, qualquer lei que vier a estabelecer esse tipo de diretriz para condicionar a demarcação de terras indígenas poderá ser questionada.
“Seria uma lei que afronta a Constituição”, disse Belisário, sobre essa possibilidade. “E isso vai ter consequências. É possível que venha essa discussão já no Supremo, mas é um passo posterior. Mas colidindo com a decisão do STF, se ela for contrária ao marco, essa lei cai”.
Para o advogado, a discussão sobre a tese é constitucional e, portanto, sob competência do Supremo. “O STF tem legitimidade para discutir esse tema”, declarou.
O advogado Luiz Mario Guerra não vê empecilhos para que os ministros da Corte julguem o tema, mesmo que o assunto esteja sendo discutido no Congresso.
“Levando em conta que estamos ainda no meio do caminho de produção da lei, não haveria nenhum problema o STF discutir essa matéria, principalmente porque ela começou com um conflito concreto, relacionado aos povos Xokleng em Santa Catarina”, afirmou à CNN.
Para o especialista, que é Procurador do Estado de Pernambuco e sócio do Urbano Vitalino Advogados, a Corte terá que se debruçar sobre a eventual nova lei, caso seja aprovada antes de o STF concluir o julgamento. “Acho difícil esse contexto, mas digamos que o Congresso aprove e logo depois o Supremo volte a julgar o caso.
A Corte terá que considerar a nova legislação, nem que seja para declará-la inconstitucional”, disse.
Guerra entende que a aprovação do tema pela Câmara traz algum tipo de pressão para os ministros, mas defende que a palavra final é do Supremo, como guardião da Constituição e órgão a quem cabe interpretar seus dispositivos.
“Quando o STF está com uma matéria para ser apreciada e a Câmara retira da gaveta um projeto de 2007 para apreciar antes do Supremo, está na cara que existe, em maior ou menor grau, algum tipo de conflito constitucional”, afirmou.
A tese
O processo do marco temporal em discussão no STF teve sua repercussão geral reconhecida em 2019. O instrumento permite que a definição que for adotada pela Corte sirva de baliza para todos os casos semelhantes em todas as Instâncias da Justiça.
O caso concreto é uma ação do Instituto do Meio Ambiente do Estado de Santa Catarina (IMA) contra o povo Xokleng, da Terra Indígena Ibirama-La Klaño. O território fica às margens do rio Itajaí do Norte, em Santa Catarina. Da população de cerca de duas mil pessoas, também fazem parte indígenas dos povos Guarani e Kaingang.
O governo catarinense pede a reintegração de posse de parte da área, que estaria sobreposta ao território a Reserva Biológica Sassafrás, distante cerca de 200 quilômetros de Florianópolis.
A data da promulgação da Constituição Federal – 5 de outubro de 1988 – é o ponto central da tese do marco temporal. No artigo 231, está estabelecido o seguinte:
“São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”.
A proposição de um marco temporal já havia sido ventilada antes, mas ganhou tração a partir de um precedente que apareceu em julgamento do próprio STF, em 2009, quando a Corte julgou a demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima.
Na ocasião, os ministros entenderam que os indígenas tinham direito ao território porque estavam no local na data da promulgação da Constituição. A partir daí a tese passou a ser mobilizada para os interesses contrários aos indígenas. Ou seja, se eles poderiam também pleitear as terras sobre as quais não ocupassem na mesma data.
Critério objetivo
Representantes do agronegócio entendem ser fundamental a delimitação de um marco temporal para trazer segurança jurídica às disputas no campo. Outro ponto destacado é a possibilidade de uma decisão a favor dos indígenas afastar investimentos no setor, com impactos para toda economia.
Paulo Sérgio Aguiar, vice-presidente da Associação Brasileira de Produtores de Algodão (Abrapa), disse à CNN que a Constituição traz uma condição objetiva para demarcar terras indígenas.
“No caso Raposa Serra do Sol, o STF trouxe o posicionamento do artigo 231, de que são as terras que os índios ‘ocupam’ e não ‘ocuparam’. Ou seja, que eles estavam ocupando em 5 de outubro de 1988”, disse.
Aguiar critica o processo de demarcação de terras indígenas, dizendo que há pouca margem para contestação e participação de proprietários, além do que considera falta de objetividade das provas trazidas para amparar a ocupação tradicional da terra.
O produtor também afirmou que o voto do ministro Edson Fachin, no STF, permite que indígenas reivindiquem terras ocupadas em um passado “muito distante”.
Lucas Beber, vice-presidente da Associação dos Produtores de Soja e Milho do Estado de Mato Grosso (Aprosoja-MT), afirmou que é uma “vontade popular” a resolução desse impasse.
“A gente enxerga que essa definição vai trazer tranquilidade jurídica para indígenas e proprietários de terras”, afirmou. “O marco temporal tem que ficar claro que não impede que sejam demarcadas áreas onde eles estavam ocupados em 1988”.
Direito originário
Conforme disse à CNN a advogada Kari Guajajara, o direito dos povos indígenas a seus territórios é um direito originário, ou seja, que antecede o próprio Estado brasileiro, e que está assegurado textualmente na Constituição.
“O Brasil tem vários capítulos não resolvidos e um deles é a pauta dos povos indígenas”, afirmou. “Essa tese é reflexo da incapacidade e da não vontade estratégica para resolver esse capítulo da história e assegurar os direitos dos povos aos seus territórios”, declarou.
A advogada, que atua na defesa jurídica da Coiab (Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira), disse não ver possibilidade de um desfecho favorável aos indígenas via Congresso.
“A gente espera que no Judiciário, no papel contra majoritário que ele tem para manter a democracia em pé, que possa fazer essa análise imparcialmente”, afirmou. “O Judiciário é o único Poder que tem condições de reconhecer esse direito originário e se fazer respeitar a Constituição”.
Segundo a Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil), todos os 1.393 territórios indígenas (já demarcados, em processo de homologação ou de identificação) correm risco de serem impactados, caso seja estabelecido um marco temporal.
A situação traria efeitos especialmente nocivos a povos isolados e de recente contato, pela dificuldade em se comprovar a ocupação de determinado território em outubro de 1988.
“Se aprovada, a tese reforça uma política de esquecimento que ignora todo processo de violência sofrida pelos povos indígenas, de remoções forçadas e de expulsões”, disse Guajajara.
Fonte: CNN Brasil