O Superior Tribunal de Justiça (STJ) deixará de julgar milhares de ações ao aplicar o filtro processual aprovado nesta semana e promulgado ontem pelo Congresso Nacional. Recursos para discutir valores de danos morais e honorários advocatícios não passarão mais pelas mãos dos ministros, que poderão se dedicar, de agora em diante, apenas a casos com “relevância”.
O STJ estima uma redução de 40% na quantidade de recursos – só no ano passado entraram cerca de 400 mil. O texto aprovado estabelece o que deverá ser obrigatoriamente analisado pelos ministros: ações penais, de inelegibilidade e improbidade administrativa, causas que envolvam valores superiores a 500 salários mínimos (hoje R$ 606 mil) e decisões que contrariem a jurisprudência do tribunal superior.
Hoje, o STJ tem como missão dar a última palavra em questões infraconstitucionais. Por isso, até então, recebia e tinha que julgar desde o fornecimento de medicamentos fora do rol da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) até valor de indenização pela presença de objetos em alimentos, disputas entre vizinhos e brigas entre animais de estimação.
Apenas sobre objetos encontrados em alimentos, os ministros já julgaram ao menos 15 processos e nasceu jurisprudência sobre o tema: o dano moral é concedido nos casos em que o consumidor ingeriu o alimento. Existe até “tese filhote”. O STJ já julgou pedido de indenização porque o cachorro da família ingeriu ração com vermes. O pedido não foi aceito, porque o tribunal superior não reanalisa provas, mas os honorários foram elevados, já que os donos do cachorro haviam perdido a causa na segunda instância.
Sobre as disputas entre vizinhos, em 2019, por exemplo, a 3ª Turma definiu que a previsão do Código Civil que impede a abertura de janelas, construção de terraço ou varanda a menos de um metro e meio do terreno vizinho não pode ser relativizada.
A motivação para o novo filtro é semelhante a que levou à criação da repercussão geral para o Supremo Tribunal Federal (STF) em 2007. Para serem julgados pelos ministros, os processos precisam ser relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico, além dos interesses das partes envolvidas, permitindo a aplicação da tese adotada para resolver processos similares.
Um dos objetivos da repercussão geral também era diminuir a sobrecarga de processos que chegavam ao STF. Passados 15 anos da implementação, hoje o Supremo tem 11,4 mil ações recursais. Em dezembro de 2007, eram 118,7 mil.
De acordo com o presidente do STJ, ministro Humberto Martins, muitos recursos afetam apenas os interesses das partes. “A PEC permitirá ao STJ exercer de forma mais efetiva seu papel de firmar teses jurídicas para uniformizar a aplicação das leis federais”, afirma.
Inicialmente, a proposta de filtro do STJ seguia a mesma ideia da repercussão geral do STF, segundo Fernando Natal Batista, professor de processo civil do IDP. O projeto, acrescenta, acabou sendo modificado no Congresso. O texto aprovado determina que a admissão do recurso só poderá ser rejeitada pela manifestação de dois terços do colegiado competente para o julgamento.
A implementação de um filtro é importante pelo fato de o Supremo e o STJ não terem a mesma finalidade de um tribunal de segunda instância, diz Batista. “São tribunais de uniformização.”
Para Cristiane Romano, vice-presidente do Centro de Estudos das Sociedades de Advogados (Cesa), dificilmente causas que discutem menos de 500 salários mínimos serão julgadas no STJ pela dificuldade em provar que podem tratar de teses relevantes. “Existem causas de valor baixo que têm teses. Mas vão ficar relegadas a tribunais estaduais e não vai haver uniformização, que é a missão do STJ”, afirma.
Hoje, o STJ utiliza pouco a possibilidade de firmar precedentes por meio do julgamento dos recursos repetitivos, segundo Paulo Mendes, professor de processo civil no IDP e procurador da Fazenda. A medida, acrescenta, já impede que outros processos sobre o mesmo assunto sejam levados ao STJ. “O filtro [de relevância] teria um alcance muito menor se o STJ utilizasse mais o que já está à disposição dele”, diz.
Entre os operadores do direito, afirma o professor, há uma expectativa muito grande de como o STJ vai usar esse filtro e sobre a uniformização dos temas que não chegarem à Corte. “Cada tribunal [de segunda instância] poderá ter um entendimento diferente sobre o assunto.”
O advogado Álvaro Rottundo, sócio do Gaia Silva Gaede, destaca o fato de a proposta aprovada ter limitado a aplicação do novo filtro do STJ a casos como os de valor acima de 500 salários mínimos. “Existem ações abaixo desse valor muito importantes para pessoas e empresas e, agora, não chegarão mais ao STJ”, afirma.
O filtro, para o advogado, poderá restringir de forma mais severa o acesso de demandas cíveis, por exemplo, que tratem de interpretação de contratos, posse e locação. Por outro, Rottundo reconhece que, com um volume menor de casos, o STJ poderá exercer melhor sua função e uniformizar a jurisprudência.
Fonte: Valor Econômico