O primeiro dia do julgamento do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e outros sete réus no processo criminal por suposta tentativa de golpe de Estado foi marcado, nesta terça-feira (2), por declarações de defesa da soberania nacional e da democracia, pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Alexandre de Moares, relator do processo, e pelo procurador-geral da República, Paulo Gonet, além das manifestações das defesas dos réus.
Além de Bolsonaro, estão sendo julgados Walter Braga Neto, ex-ministro da Defesa e da Casa Civil; Augusto Heleno, ex-ministro do gabinete de Segurança Institucional; Anderson Torres, ex-ministro da Justiça e ex-secretário de Segurança Pública do DF; Paulo Sérgio Noguira, ex-ministro da Defesa; Almir Garnier Santos, ex-comandante da Marinha; Mauro Cid, ex-ajudante do Ordens, e Alexandre Ramagem, deputado federal pelo PL-RJ e ex-diretor geral da Agência Brasileira de Inteligência (Abin).
Todos os julgados no STF a partir desta terça fazem parte do chamado “núcleo crucial” da suposta organização criminosa.
Segundo a acusação, esse núcelo teria tentado subverter o resultado das eleições de 2022, vencidas pelo atual presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Eles são julgados pelos crimes de organização criminosa armada, golpe de Estado, abolição violenta do Estado Democrático de Direito, dano qualificado e deterioração de patrimônio tombado.
Todos negam as acusações.
O julgamento é conduzido pela Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF), composta pelos ministros Alexandre de Moraes, Cármen Lúcia, Cristiano Zanin, Flávio Dino e Luiz Fux, e terá ao todo oito sessões distribuídas em duas semanas.
Leitura do relatório
A sessão começou com a leitura do relatório da ação penal pelo ministro Alexandre de Moraes, relator do processo.
Moraes abriu sua fala, antes da leitura do relatório, enaltecendo a demoracracia.
“O Brasil chega em 2025 com uma democracia forte, as instituições independentes, economia em crescimento e a sociedade civil atuante”, disse ele.
E prosseguiu: “A soberania nacional é um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, expressamente previsto no inciso primeiro do artigo primeiro da Constituição Federal. Não pode, não deve e jamais será vilipendiada, negociada ou extorquida” , disse Moraes, no que foi entendido como um recado ao presidente dos Estados Unidos, Donald Trump.
Nas últimas semanas, Trump aplicou taxas e sanções a autoridades brasileiras, mencionando o julgamento de Bolsonaro, que chamou de “caça às bruxas”.
Alegações de Gonet
Na sequência, o procurador-geral da República, Paulo Gonet, iniciou a leitura da ação penal também destacando instrumentos previstos pela Constituição para defender a democracia.
Ele reforçou a denúncia de tentativa de golpe de Estado.
“Não é preciso esforço intelectual extraordinário para reconhecer que, quando o presidente da República e depois o ministro da Defesa convocam a cúpula militar para apresentar documento de formalização de golpe de Estado, o processo criminoso já está em curso”, afirmou Gonet, que pediu a condenação dos réus.
Ele argumentou que a impunidade poderia “recrudescer o ímpeto de autoritarismo” e colocar “em risco o modelo de vida civilizado”.
Gonet rebateu os argumentos das defesas de que não houve execução de um plano golpista.
Segundo ele, para a configuração da tentativa de golpe, não seria necessário um decreto assinado pelo presidente da República. Disse ainda que as articulações não poderiam ser tratadas como um “plano bonachão”.
Após a manifestação do procurador-geral da República, o julgamento foi interrompido.
A defesa de Mauro Cid
Após o intervalo para o almoço, a sessão foi retomada com o início das alegações dos advogados de defesa dos réus.
O julgamento foi retomado com as manifestações dos advogados Jair Alves Pereira e Cezar Roberto Bitencourt, defensores do tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro que se tornou delator no processo.
A defesa de Mauro Cid foi a primeira a falar, em função do acordo de delação premiada.
Jair Alves Pereira começou enaltecendo o currículo do militar.
Em seguida, a defesa defendeu a validade do acordo de delação fechado com a Polícia Federal em 2023, dizendo que “Cid não foi coagido a falar nem pelo delagado da Polícia Federal e nem pelo ministro Alexandre de Moraes”.
A defesa de outros réus tem alegado que houve coação a Cid e tentado desacreditar e derrubar a delação do ex-ajudante de ordens.
Uma eventual anulação da delação premiada prejudicaria Cid, que corre risco de perder os benefícios firmados em acordo com a PF.
Mas a PGR sustenta que a delação foi apenas um ponto de partida para as provas e, por isso, o processo no Supremo não seria encerrado.
Na sequência, o advogado Cezar Roberto Bitencourt se empolgou nos elogios aos ministros do STF e, ao iniciar sua sustentação oral, o jurista cumprimenta os juízes da turma e diz que o ministro Luiz Fux estava “sempre atraente, como são os cariocas”.
Depois, ele afirmou que Mauro Cid jamais elaborou, compartilhou e incitou e qualquer conteúdo golpista.
“Não há sequer nenhuma mensagem de sua autoria propondo, incentivando ou validando qualquer atentando contra a democracia ou [contra] o sistema eleitoral. O que há é o recebimento passivo de mensagens em seu WhatsApp, das quais ele sequer fazia repasse” , afirmou.
Segundo o advogado, a acusação confunde um vínculo funcional com subserviência, com conduta criminosa.
A defesa negou ainda que Cid tenha participado dos atos de invasão às sedes dos Três Poderes no 8 de janeiro de 2023.
Também argumentaram que não há provas que mostrem que o tenente-coronel participou da tentativa de golpe.
A defesa de Alexandre Ramagem
O advogado Paulo Renato Cintra iniciou a defesa do deputado federal Alexandre Ramagem (PL).
Cintra defendeu que a acusação por organização criminosa contra Ramagem também seja suspensa e afirmou que a Procuradoria-Geral da República (PGR) cometeu “erros graves” na denúncia.
Em julho, a PGR apresentou as alegações finais e pediu a condenação de todos os acusados por cinco crimes: organização criminosa armada, tentativa de abolir violentamente o Estado Democrático de Direito, golpe de Estado, dano qualificado e deterioração de patrimônio tombado.
Alexandre Ramagem teve o processo suspenso em relação aos dois últimos crimes, que ocorreram após sua diplomação como parlamentar, prerrogativa que a Constituição dá ao Congresso.
“A denúncia imputou-lhe o crime de organização criminosa. O entendimento da defesa é de que a resolução nº 18 da Câmara alcançaria o crime de organização criminosa, que continuava em vigência após a diplomação de Ramagem como deputado federal” , disse.
Ao mencionar que a PGR cometeu erros fáticos “graves” a respeito de Ramagem, citou o suposto acesso ao software FirstMile que teria sido usado de maneira irregular, no âmbito da chamada Abin paralela, para monitoramento de celulares de políticos, policiais, jornalistas e juízes.
Ele reiterou o argumento de que os textos encontrados pela PF com Ramagem, nas quais ele questionada a lisura do processo eleitoral e das urnas eletrônicas, eram apenas “anotações”.
Segundo Cintra, os arquivos enviados ao então presidente foram produzidos a partir de informações públicas e discursos do próprio presidente, além de “anotações e opiniões pessoais”.
Como já defendido em outras etapas do processo, o advogado de Ramagem reforçou que ele já não ocupava cargos que poderiam vinculá-lo às ações do suposto núcleo crucial da trama golpista.
No final da sua sustentação, o jurista levou uma bronca da ministra Carmem Lúcia.
“Vossa senhoria sabe a distinção entre processo eleitoral auditável e voto impresso. Repetiu como se fosse sinônimo, e não é, porque o processo eleitoral é amplamente auditável no Brasil, passamos por auditoria”, disse a ministra quando o advogado encerrava sua participação no julgamento.
Cármen Lúcia justificou a intervenção para que não ficasse a impressão “em quem assiste” ao julgamento que as urnas eletrônicas não são auditáveis.
Defesa de Almir Garnier
O advogado Demóstenes Lázaro Xavier Torres, advogado de defesa do ex-comandante da Marinha Almir Garnier, fez uma longa introdução, antes das suas alegações, elogiando o ministro Cristiano Zanin, a quem chamou de “ídolo” pelo trabalho realizado durante a Operação Lava Jato, e também o ministro Alexandre de Moraes.
Ele ainda fez menção aos demais integrantes da Primeira Turma do STF: Cármen Lúcia, Luiz Fux e Flávio Dino.
Depois, iniciou sua defesa ao réu pedindo rescisão da delação premiada do tenente-coronel Mauro Cid.
Ele também fez críticas à acusação apresentada pela Procuradoria-Geral da República (PGR).
Cid afirmou em delação premiada que Garnier era da “ala radical” do entorno de Bolsonaro.
Em seu interrogatório no STF, em junho, Mauro Cid relatou ter sido avisado pelo ex-comandante do Exército Marco Antônio Freire Gomes de que Garnier teria colocado suas tropas à disposição de Bolsonaro.
Cid disse ainda que Garnier tinha se colocado à disposição para apoiar que Bolsonaro assinasse um decreto com medidas para reverter o resultado das eleições.
A defesa do ex-chefe da Marinha nega as acusações.
Demóstenes afirmou que o procurador-geral da República feriu o princípio da congruência, porque nas alegações finais ele aponta dois novos fatos que não existem na denúncia.
“E o Supremo Tribunal Federal e o artigo 384 do código de processo penal dizem claramente que não é possível que o réu se defenda de algo que não lhe foi imputado. Se tiver que imputar dois outros fatos, tem que fazer o aditamento da denúncia, ou se não, o Supremo Tribunal Federal tem que pedir para desconsiderar no julgamento” , disse.
Torres defende a individualização dos réus. Segundo ele, em relação aos integrantes desse suposto núcleo, deve ficar claro exatamente quais ações cada um praticou.
A defesa de Anderson Torres
O advogado Eumar Roberto Novacki se apresentou na defesa de Anderson Torres e pediu justiça. Segundo ele, não há provas que vinculem seu cliente à acusação de tentativa de golpe.
Anderson Torres é acusado de oferecer suporte jurídico para decretos de medida de exceção e participar da disseminação de desinformação contra o sistema eleitoral.
Segundo a PGR, Torres teria usado sua posição no Ministério da Justiça para influenciar a Polícia Rodoviária Federal (PRF).
O advogado afirmou que Torres não participou de reunião em que se discutiram medidas como estado de sítio.
Afirmou que representantes da Polícia Federal e da Polícia Rodoviária Federal declararam, em juízo, que não houve qualquer pedido de direcionamento de policiamento no dia da eleição por parte do então ministro da Justiça.
Negou ordens de bloqueio de estradas em regiões eleitorais do PT durante as eleições.
Com o fim do governo Bolsonaro, Torres assumiu a Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal, no governo Ibaneis Rocha, cargo que ocupava durante o 8 de Janeiro.
No dia dos ataques à sede dos três Poderes, em Brasília, ele estava de férias, nos Estados Unidos, segundo seu advogado.
Ele enfatizou que seu cliente não conspirou ou relaxou o esquema de segurança no Distrito Federal quando o réu era secretário.
O defensor contestou ainda a sugestão da PGR de que a viagem aos Estados Unidos não estava marcada com antecedência. A PGR diz que a GOL, companhia aérea, não confirmou a validade de documento de reserva.
O advogado afirmou que a viagem estava programada e era de conhecimento do então governador do Distrito Federal.
Outro ponto abordado pela defesa é a chamada minuta golpista, encontrada na casa de Torres.
Novacki sustentou que o documento não é o mesmo identificado no celular de Mauro Cid nem o discutido em reuniões com militares, e que já circulava na internet desde dezembro de 2022.
A defesa chegou a solicitar ao STF que fosse identificado o autor da postagem original, mas o rastreamento não foi concluído, segundo ele.
Após as alegações da defesa de Anderson Torres, o ministro Cristiano Zanin, que preside a sessão, suspendeu o julgamento, que será retomado às 9h desta quarta-feira (3).
Depois disso, as sessões serão retomadas na próxima semana, nos dias 9, 10 e 12 de setembro, quando o julgamento será encerrado.
O ex-presidente Jair Bolsonaro não compareceu ao primeiro dia de julgamento por “motivo de saúde”, segundo informou sua defesa.
Fonte: IG