Depoimentos à Polícia Federal (PF) de militares e civis sobre a suposta tentativa de golpe de Estado com o objetivo de manter Jair Bolsonaro (PL) no poder após perder as eleições de 2022 mostraram que o ex-presidente conduziu reuniões com os comandantes das Forças Armadas para discutir a “legalidade jurídica” do tema e apresentar documentos com teor golpista.
Os depoimentos colocam Bolsonaro no centro da trama golpista.
O sigilo dos depoimentos foi derrubado na sexta-feira (15) pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes, relator do caso, sob o argumento de que diversos trechos já haviam sido divulgados pela imprensa.
Quatro ouvidos pela PF falaram nos depoimentos: o ex-comandante do Exército Freire Gomes, o ex-comandante da Aeronáutica Carlos de Almeida Baptista Jr., o general da reserva Theophilo de Oliveira e o presidente do Partido Liberal (PL), Valdemar Costa Neto.
Bolsonaro, o candidato à vice-presidência pelo PL, Braga Netto, o ex-ministro da Defesa Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira e o ex-comandante da Marinha Almir Garnier Santos recorreram ao direito constitucional de permanecer em silêncio durante o depoimento. Para não responder a questionamentos, depoentes alegaram que não tinham tido acesso à íntegra dos processos.
Veja a lista completa dos que ficaram em silêncio:
- Ailton Gonçalves Moraes Barros
- Almir Garnier Santos
- Amauri Feres Saad
- Angelo Martins Denicoli
- Felipe Garcia Martins Pereira
- Helio Ferreira Lima
- Jair Messias Bolsonaro
- José Eduardo de Oliveira e Silva
- Marcelo Costa Câmara
- Mario Fernandes
- Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira
- Rafael Martins de Oliveira
- Walter Souza Braga Netto
- Ronald Ferreira de Araujo Junior
- Augusto Heleno
Os relatos afetam a estratégia de defesa do ex-presidente. Bolsonaro, inicialmente, dizia que não tinha conhecimento das minutas. Depois, passou a dizer que a decretação de estado de defesa no TSE para sustar a eleição (como previa o documento), é permitida pela Constituição. No entanto, os relatos dos militares mostram que não havia motivo legal para esse estado de defesa, e que a única intenção era mesmo o golpe de Estado.
Freire Gomes
O ex-comandante do Exército Freire Gomes disse à PF que se negou a participar da trama golpista, apesar da forte pressão sofrida para aderir ao plano. O general falou na condição de testemunha, e não de investigado. Ele depôs à PF no dia 1º de março de 2024 por mais de 7 horas.
Freire Gomes esteve presente em duas reuniões que trataram da minuta golpista. Em 7 de dezembro de 2022, uma versão do documento que previa o “estado de sítio dentro das quatro linhas” foi apresentada em uma reunião no Palácio do Alvorada, da qual participaram os três comandantes das Forças Armadas. Outra versão do documento foi apresentada em um segundo encontro de Bolsonaro com os três comandantes — Freire Gomes disse em depoimento não se lembrar da data.
A PF também identificou mensagens de Mauro Cid, então ajudante de ordens de Bolsonaro, para Freire Gomes. Nelas, Cid fala sobre os manifestantes pró-Bolsonaro e o que chamava de “pressão” sobre o ex-presidente para que ele tomasse “uma medida mais radical”.
Gomes confirmou ter participado de reuniões no Palácio da Alvorada nas quais Bolsonaro manifestou interesse em uma ruptura institucional e afirmou ter se negado a colaborar com a tentativa de golpe.
Na reunião de 7 de dezembro, uma versão mais abrangente do documento que levaria ao golpe de Estado foi apresentada e discutida com a anuência de Bolsonaro. Freire Gomes, porém, afirma ter deixado claro que “o Exército não aceitaria atos de ruptura institucional”.
Veja o trecho:
“[Freire Gomes] respondeu que se recorda de ter participado de reuniões no Palácio do Alvorada, após o segundo turno das eleições, em que o então Presidente da República Jair Bolsonaro apresentou hipóteses de utilização de institutos jurídicos como GLO, Estado de Defesa e Estado de Sítio em relação ao processo eleitoral e que sempre deixou evidenciado ao então Presidente da República Jair Bolsonaro, que o Exército não participaria na implementação desses institutos jurídicos visando reverter o processo eleitoral.”
Por ter se negado a participar de um golpe de Estado, Gomes disse ter sofrido ataques de apoiadores do ex-presidente envolvidos no caso, incluindo o ex-ministro da Defesa, general Braga Netto.
Em 14 de dezembro, uma semana após Gomes negar participar do golpe de Estado, Braga Netto trocou mensagens com o militar da reserva, Ailton Gonçalves Moraes Barros, classificando a postura de Gomes como uma “omissão” e uma “indecisão”.
Veja o trecho:
“Indagado se o trecho da mensagem encaminhada pelo general Braga Netto no qual afirma: ‘a culpa pelo que está acontecendo e acontecerá é do general Freire Gomes. Omissão e indecisão não cabem a um combatente’, se deve ao fato de o depoente, na condição de Comandante do Exército, ter se negado a anuir com o plano de ruptura institucional, respondeu que sim.”
O ex-comandante da Aeronáutica, Carlos de Almeida Baptista Jr., foi citado por Gomes em seu depoimento. De acordo com o relato, ele e Baptista deixaram evidente que eram contrários à tentativa de golpe.
Veja o trecho:
“Que da mesma forma, o depoente e o Brigadeiro Baptista Junior, como comandantes, se posicionaram contrários às medidas constantes na minuta de decreto [mais abrangente], que impediria a posse do governo eleito.”
Carlos de Almeida Baptista Jr.
Baptista Jr. assumiu o comando da aeronáutica em abril de 2021 durante uma crise no governo Bolsonaro quando, pela primeira vez desde a redemocratização, os comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica deixaram os cargos ao mesmo tempo, fora do período de troca de governos.
O ex-comandante esteve presente em reuniões no Palácio do Planalto nas quais se discutiram formas de conferir legalidade ao plano golpista.
Em depoimento à PF, afirmou que Freire Gomes ameaçou prender Bolsonaro caso tentasse consumar o golpe de Estado e que listou os atos contra a democracia que o levariam a ter que prender o ex-presidente.
Veja o trecho:
“[Afirmou] que em uma das reuniões dos comandantes das Forças com o então presidente após o segundo turno das eleições, depois de o presidente da República, Jair Bolsonaro, aventar a hipótese de atentar contra o regime democrático, o então comandante do Exército, general Freire Gomes, afirmou que caso tentasse tal ato teria que prender o presidente da República.”
Assim como Gomes, Baptista Jr. relatou ter deixado evidente que não toparia participar de nenhum plano golpista, e que não haveria qualquer hipótese de Bolsonaro permanecer no cargo.
Ele também contou que “ouviu” sobre a existência de uma ordem para atrasar a divulgação de um relatório, feito pelo Ministério da Defesa, que atestava a lisura das urnas eletrônicas, nas eleições de 2022.
Baptista Jr. também afirmou que o grupo recebeu da cúpula do governo Bolsonaro várias teses de fraudes no sistema eletrônico de votação, mas que todas foram rechaçadas pela comissão.
Estevam Theophilo Gaspar de Oliveira
Theophilo de Oliveira foi comandante do Comando de Operações Terrestres (Coter) entre o final de março de 2022 até o final de novembro de 2023. A unidade fica em Brasília e não tem nenhuma tropa subordinada diretamente a ela.
De acordo com as investigações, em 9 de dezembro de 2022, Theophilo se reuniu com Bolsonaro no Alvorada e supostamente consentiu com a adesão ao golpe de Estado desde que o presidente da República assinasse a medida, conforme conversas encontradas no celular do ajudante de ordens Mauro Cid.
Em seu depoimento à PF, disse que não tinha “qualquer relação pessoal” com o ex-presidente e nem “contemporaneidade militar”.
Informou, ainda, que “não tinha poder de decisão” sobre movimentação de tropas e que respondia a decisões do comandante do Exército, à época o general Freire Gomes.
Veja o trecho:
“[Disse] que não possuía poder decisório de movimentar tropas; que não tinha tropas sob sua subordinação; indagado se possui relação próxima ou de contemporaneidade militar com o ex-presidente Jair Bolsonaro, respondeu que não tinha qualquer relação pessoal com o ex-presidente nem contemporaneidade militar; que não o conhecia pessoalmente; que nunca teve relação de proximidade com o então presidente.”
Theophilo relatou que foi ao Palácio do Alvorada três vezes, todas elas após o segundo turno das eleições de 2022. Ele afirmou ter ido ao local a pedido do general Freire Gomes e que em duas oportunidades estava acompanhado do ex-comandante do Exército. No dia 9 de dezembro de 2022, ele foi sozinho ao Alvorada por ordem de Freire Gomes.
Veja o trecho:
“que foi apenas três vezes ao Palácio da Alvorada, todas após o segundo turno das eleições de 2022; que as três vezes o declarante foi ao Palácio da Alvorada a pedido do General Freire Gomes; que duas vezes estava acompanhado do general Freire Gomes e em uma oportunidade, no dia 09/12/2022, foi sozinho, por ordem do General Freire Gomes.”
O general da reserva afirmou que, no dia 9 de dezembro daquele ano, foi sozinho ao Alvorada para ouvir Bolsonaro se lamentar sobre o resultado das eleições e que nesta ocasião não conversou sobre a trama golpista, que apenas ficou ouvindo o ex-presidente. Ele também disse que, em nenhum momento, foi apresentado minuta ou documento sobre a tentativa de golpe.
Veja o trecho:
“Que a segunda [reunião] ocorreu no dia 09/12/2022, no Palácio do Alvorada, apenas com o então presidente Jair Bolsonaro, por ordem do general Freire Gomes dada no mesmo dia; que a reunião foi para ouvir lamentações do então presidente da República sobre o resultado das eleições; que apenas ouviu o presidente falando; que a reunião foi realizada apenas com o ex-presidente; QUE posteriormente foi embora; que na reunião não foi tratado sobre uma possível minuta de golpe ou utilização de GLO, Estado de Defesa, Estado de Sítio ou Intervenção Federal.”
Fontes que colaboram com as investigações avaliam que o ex-presidente estava mais inconformado com a falha na tentativa de se manter no poder do que irritado com a derrota para Lula (PT) nas eleições de 2022.
Por outro lado, Freire Gomes negou em seu depoimento à PF que determinou que Theophilo fosse a reuniões com Bolsonaro no Alvorada.
Veja o trecho do depoimento de Freire Gomes:
“Indagado sobre qual atitude tomou ao saber da ida do general Theophilo ao Palácio do Alvorada, respondeu que tomou conhecimento, por meio de áudio encaminhado pelo tenente-coronel Mauro Cid, que o então presidente Jair Bolsonaro solicitou a ida do general Theophilo ao Palácio da Alvorada no dia 09/12/2022; que não partiu do depoente a ordem para que o general Theophilo fosse até o Palácio de Alvorado se encontrar com o então presidente; que não tinha ciência do motivo da convocação; que ficou desconfortável com o episódio, por desconhecer o teor da convocação e considerando o conteúdo apresentado nas reuniões anteriores.”
Theophilo, além de ter dito que foi a pedido de Freire Gomes, disse que reportou “todo o conteúdo desta reunião” em que foi sozinho ao ex-comandante e que fez o relato na residência dele. O general ainda foi perguntado se Bolsonaro solicitou a ele que, na condição de comandante do Coter, atuasse para cumprir a GLO, ele respondeu que “não”.
Veja trecho:
“Indagado se o então presidente Jair Bolsonaro solicitou que o declarante, na condição de comandante do Coter, general Estevam Cals Theophilo Gaspar de Oliveira atuasse para cumprir a Garantia de Lei da Ordem/Estado de Defesa, respondeu que não.”
Valdemar Costa Neto
No depoimento à PF, o presidente do Partido Liberal, Valdemar Costa Neto, foi questionado sobre as falas de Bolsonaro que, ainda como presidente da República, lançavam dúvidas sobre as eleições de 2022.
Ele afirmou que “não concorda” com as suspeitas levantadas pelo ex-presidente sobre a lisura das urnas eletrônicas e do resultado da eleição que deu vitória a Lula.
Veja o trecho do depoimento:
“Indagado se, na condição de presidente do Partido Liberal, concorda com as palavras do então presidente Jair Bolsonaro de que haveria fraude nas urnas eletrônicas e consequentemente nas eleições presidenciais de 2022, respondeu que não concorda com a fala do presidente Bolsonaro, pois já participou de várias eleições e nunca presenciou nada que desabonasse o sistema eleitoral brasileiro. Inclusive, [disse que] orientou a bancada do partido a votar contra a implementação do voto impresso.”
Em 22 de novembro de 2022, o PL entrou com um pedido de verificação extraordinária do resultado do segundo turno das eleições no Tribunal Superior Eleitoral (TSE). No pedido, o PL pediu a invalidação dos votos de mais de 250 mil urnas sem apresentar qualquer prova de fraude. O pedido ignorava que as mesmas urnas tinham sido usadas no primeiro turno das eleições.
O relatório elaborado por uma consultoria privada alegava que as urnas anteriores ao modelo 2020, cerca de 60% do total utilizado nas eleições, têm um número de série único, quando, na opinião da consultoria, deveriam apresentar um número individualizado, porque somente assim, afirma o relatório, seria possível fazer uma auditagem.
No entanto, todas as entidades fiscalizadoras à época atestaram que a ausência desse número de série não significava que os resultados estivessem comprometidos ou que não fosse possível associar os boletins a cada urna, uma vez que esse número não é a única forma de identificação, nem o que confere autenticidade à urna.
Questionado sobre o pedido do PL, Valdemar respondeu que a consultoria privada, o Instituto Voto Legal, foi contratada pela sigla para “fiscalizar”, e não para atender a uma ordem de Bolsonaro de “questionar” o resultado eleitoral. Afirmou ainda que a contratação foi “uma demanda direta de Bolsonaro e de deputados do PL”.
Ele também disse que foi o ex-ministro e atual senador Marcos Pontes (PL) quem indicou o instituto e que o PL pagou R$ 1 milhão, em cinco parcelas, pelo serviço prestado.
Veja os trechos do depoimento:
“Indagado de quem foi a ideia em contratar o Instituto Voto Livre, respondeu que a ideia surgiu entre os deputados do Partido Liberal e do então presidente Jair Bolsonaro.”
“Indagado quem o apresentou aos representantes do Instituto Voto Livre, respondeu que não havia empresas capazes de exercer fiscalização das urnas e o então ministro Marcos Pontes indicou que procurassem o Instituto Voto Legal, pois poderiam ajudar.”
“Indagado quanto ao total foi pago ao Instituto Voto Livre pelo Partido Liberal pelos serviços prestados nas eleições presidenciais de 2022 ,respondeu que foi pago, aproximadamente, um milhão de reais, em cinco parcelas, pago com recursos próprios do Partido Liberal.”
Costa Neto relatou que, quando o relatório vazou, Bolsonaro e deputados do PL “o pressionaram para ajuizar a ação no TSE”. Como o relatório não indicava prova das supostas fraudes no sistema eleitoral, o então presidente do TSE, ministro Alexandre de Moraes, multou o PL em R$ 22,9 milhões por má-fé na apresentação do documento.
Sobre as “minutas do golpe”, Costa Neto disse no depoimento “que sempre descartou os documentos recebidos, pois eram apócrifos” (sem assinatura), e que os destruía “na sede do partido”, triturando-os.
Veja o trecho:
“Indagado se armazenou/teve em sua posse minuta encaminhada por advogados para de utilização do art. 142, da CF/88, respondeu que sempre descartou os documentos recebidos, pois eram apócrifos.
Indagado quando e onde triturou documentos relacionados a utilização do art. 142, da CF/88, respondeu que descartou os documentos na Sede do Partido.”
Fonte: G1