A decisão do governo dos Estados Unidos de encerrar o financiamento a vacinas de RNA mensageiro (mRNA) gerou forte reação da comunidade científica e preocupa pesquisadores de diversas áreas, da infectologia à oncologia. O corte foi anunciado pela gestão de Donald Trump como parte de uma mudança de foco para “plataformas mais seguras”, como as vacinas de vírus inativado — tecnologia mais antiga e considerada ultrapassada por muitos especialistas.
A medida pode atrasar ou interromper dezenas de pesquisas promissoras contra doenças como câncer, HIV, Zika e o vírus sincicial respiratório, além de representar um golpe à preparação global para novas pandemias.
“É um retrocesso. As vacinas de vírus inativado não podem ser aplicadas em pessoas imunodeprimidas, idosos ou gestantes — justamente os grupos mais vulneráveis”, explica Jean Gorinchteyn, infectologista e secretário de Saúde de São Bernardo do Campo (SP).
Trump quer retorno a vacinas de vírus inativado
As vacinas de vírus inativado são produzidas a partir do vírus real, que é cultivado em laboratório e posteriormente “morto” por processos químicos ou físicos. Esse método, usado em imunizantes como o da febre amarela e da poliomielite, tem a vantagem de ser mais barato e fácil de armazenar. No entanto, gera uma resposta imunológica mais fraca e exige doses de reforço frequentes.
Já as vacinas de RNA mensageiro representam um salto tecnológico. Elas não contêm o vírus, mas sim uma sequência de RNA com instruções para que o organismo produza uma proteína semelhante à do patógeno, ativando o sistema imunológico.
“É como entregar ao corpo um bilhete com a receita de como combater o inimigo, sem expor a pessoa ao risco de infecção”, explica a infectologista Luana Araújo.
Além de mais eficazes, as vacinas mRNA são consideradas mais seguras, especialmente para pacientes vulneráveis. E oferecem outra vantagem: a possibilidade de personalização, o que abre caminho para aplicações além das doenças infecciosas — como o câncer.
“Com a tecnologia mRNA, conseguimos desenvolver vacinas terapêuticas personalizadas. Isso seria impensável com vírus inativado”, afirma Fernando de Moura, oncologista da BP – A Beneficência Portuguesa de São Paulo.
Vacinas de mRNA foram decisivas no controle da covid-19
Durante a pandemia de covid-19, as vacinas de mRNA, como as desenvolvidas pelas farmacêuticas Pfizer e Moderna, permitiram uma resposta rápida e eficaz à emergência sanitária. Elas foram produzidas em tempo recorde, tiveram alto índice de eficácia e ajudaram a reduzir hospitalizações e mortes em todo o mundo.
“Saímos da tragédia de 2020 por causa da vacina. E ela foi possível graças à tecnologia mRNA”, diz Moura.
Mesmo com esse histórico, o governo Trump insiste em alegações sobre a segurança dos imunizantes — o que, para especialistas, reflete uma agenda política alinhada ao movimento antivacina e não baseada em evidências científicas.
Vacinas contra câncer em risco: mais de 120 estudos podem ser afetados
A decisão afeta diretamente uma das frentes mais promissoras da medicina: as vacinas terapêuticas contra o câncer. Segundo Stephen Stefani, oncologista da Oncoclínicas e da membro Americas Health Fundation, há mais de 120 estudos clínicos em andamento com mRNA para tratar tumores como:
- Melanoma.
- Câncer de pulmão.
- Glioblastoma.
- Próstata.
- Pâncreas.
Ao contrário das vacinas tradicionais, essas são aplicadas após o diagnóstico, como parte do tratamento. Elas identificam mutações específicas do tumor e ensinam o sistema imunológico do paciente a combatê-lo de forma personalizada.
“Muitos pacientes que já falharam em tratamentos convencionais enxergam nessas vacinas a última esperança. Se esses estudos forem interrompidos, o impacto será devastador”, alerta Moura.
Impacto global e abertura para outros países
O corte nos EUA pode abrir espaço para que países como China, Índia e Brasil invistam em suas próprias plataformas de mRNA, fortalecendo a indústria local de biotecnologia. Mas esse movimento leva tempo e exige estrutura.
“A decisão enfraquece a ciência global. Ao mesmo tempo, é uma oportunidade para que outros países assumam o protagonismo e invistam no desenvolvimento dessa tecnologia”, avalia Gorinchteyn.
Para Luana Araújo, a medida é sintoma de uma “aliança entre ignorância e ideologia”, que nega avanços científicos comprovados e coloca em risco a saúde pública.
“É uma decisão criminosa do ponto de vista sanitário. Nega os dados, o histórico da pandemia e o futuro das descobertas científicas”, afirma.
Avanço do negacionismo e da hesitação vacinal
Outro temor dos especialistas é que a decisão alimente ainda mais o movimento antivacina, que já vinha ganhando força nos EUA nos últimos anos.
“Quando a hesitação parte de um líder de Estado, o impacto é muito maior. Isso gera medo, insegurança e afasta investidores”, afirma Stefani.
A alegação do governo de que vacinas mRNA seriam “instáveis” ou “inseguras” já foi refutada por diversas agências de saúde, incluindo a FDA (agência reguladora dos EUA), a OMS e estudos revisados por pares.
“Não existe nenhuma comprovação científica de que essas vacinas causaram doenças graves. Isso é fake news”, reforça Moura.
O que pode acontecer agora?
Ainda não se sabe se os estudos em andamento serão imediatamente interrompidos ou se o corte afetará apenas novos projetos. Mas o risco existe — e preocupa.
“Se um paciente está com a doença controlada e o centro de pesquisa perde o financiamento, o tratamento pode ser suspenso”, alerta Moura.
“Vamos levar o dobro do tempo para alcançar resultados que estavam próximos. E o sofrimento adicional dos pacientes estará nas costas de quem tomou essa decisão”, conclui Luana Araújo.
Fonte: G1